Pelo Padre José Júlio Rocha
A primeira vez que me lembre de alguém ter dito a “tal frase”, o sismo de oitenta ainda não tinha acontecido. Proferiu-a um tal padre Pimentel, ensocado e sem pescoço, num sermão na Fonte do Bastardo, vindo ele da Casa da Ribeira. Anos setenta. Esse padre Pimentel sempre me soou misterioso, tanto era conservador como progressista, tanto criticava o Concílio como vociferava contra a Guerra Colonial e chegou a ter a PIDE no seu encalço. Naquele dia e naquela missa, o padre Pimentel atirou-se, primeiro, à União Soviética: “É preciso acabar com a Rússia”, lembro-me bem de ele o ter dito. A Rússia (nunca dizia União Soviética ou URSS) era uma ditadura comunista, que espalhava o ateísmo e o mal pelo mundo. Mais à frente no sermão, no mesmo tom mas noutro assunto, Pimentel criticou as invetivas pós-conciliares e a confusão gerada no seio da Igreja, perante uma assembleia que nem sabia o que era a Rússia nem sabia o que era o Concílio, e então, solenemente, como quem grava uma lápide, disparou a “tal frase” que referi acima: “A Igreja não é uma democracia.” Nos meus dez anos ou coisa assim não dei importância de relevo à frase, até porque, com aquela idade, mais do que ouvir o padre o que queremos é que a missa acabe. Mas achei estranho que, naquele tempo do pós 25 de abril, depois de tantas vezes ter ouvido falar que a democracia era uma coisa boa e a ditadura uma coisa má, até porque a Rússia era uma ditadura, ele dissesse que a Igreja não era uma democracia. Então, para o padre Pimentel, a Igreja, como a URSS, era uma ditadura? Foi isto que se me colou à cabeça há quase 50 anos e eu nunca gostei, nem gosto, quando alguém diz – e isto é sempre suspeito – que a Igreja não é uma democracia.
Toda a gente sabe que a Igreja não é uma democracia, como toda a gente sabe que a família não é uma democracia, nem a filarmónica da freguesia o é, nem a Escola do Alto das Covas. O termo “democracia” aplica-se, em política, a estados e formas de governo e a Igreja, apesar de ter o Vaticano por sua conta, este não tem povo para formar uma democracia. Mas quando se diz que a Igreja não é uma democracia, estar-se-á a afirmar que é uma ditadura, a outra alternativa? Portanto, por favor, quem ler este artigo não faça mais confusões, até porque, quando se diz isto quer-se, geralmente, afirmar o poder da hierarquia eclesiástica, em oposição a quem fala de Povo de Deus e de participação dos batizados na vida da Igreja.
A Igreja é constitutivamente hierárquica e essa hierarquia foi querida por Jesus. Há rios amazónicos de livros sobre isso e eu não serei certamente a pessoa mais indicada para escrutinar as eclesiologias antigas. Pretendo só fazer uma pequena visita aos Evangelhos para perceber o que Jesus entendia como “poder”. E uma realidade salta imediatamente à vista: ou o poder é serviço ou é obra do Mal. Desde o “Eu vim para servir e não para ser servido”, passando pelo “quem se faz humilde será exaltado”, “os primeiros serão os últimos”, “não vos deixeis tratar por doutores”, “felizes os humildes”, “não useis duas túnicas”, “os primeiros serão os últimos e os últimos os primeiros”, “quem quiser ser grande, seja vosso servo” até um sem-fim de palavras e atos que terminam num dos mais simbólicos gestos de Jesus, antes do Getsémani: “Enquanto celebravam a ceia, Jesus, sabendo perfeitamente que o Pai tudo lhe pusera nas mãos, e que saíra de Deus e para Deus voltava, levantou-se da mesa, tirou o manto, tomou uma toalha e atou-a à cintura. Depois deitou água na bacia e começou a lavar os pés aos discípulos” (Jo 13, 3-5). Hierarquia é servir, é lavar os pés. Talvez ninguém tenha descrito melhor a hierarquia do que Gregório Magno, que se chamou a si o “servo dos servos de Deus”.
Há, no entanto, uma realidade que, neste ponto, é bem mais a essencial à Igreja do que a sua constituição hierárquica: a Igreja é, acima de tudo, koinonia, que, traduzida do grego, quer dizer comunhão, participação, união, partilha. Isso vê-se em todo o seu esplendor na Igreja nascente, onde “os irmãos eram assíduos ao ensino dos Apóstolos, à comunhão fraterna, à fração do pão e às orações” (Act 2, 42). A Koinonia será então um conceito tão radical que ultrapassa em muitas léguas o próprio conceito de democracia. Implica, na sua essência, valores como a fé, a esperança e o amor, entre outras riquezas e que levavam os pagãos a exclamarem: “Vede como eles se amam.”
A koinonia, na Bíblia, é a salvação escatológica oferecida pelo Pai, através da ação do Filho, no dinamismo do Espírito e que se concretiza no hoje da nossa história. Enquanto tal, a koinonia implica uma resposta de comunhão e de participação dos cristãos, que acolhem a verdade de Jesus. Essa atitude comporta necessariamente relações horizontais entre as pessoas, porque, na Igreja, e mais importante do que a sua hierarquia constitutiva, somos todos filhos do mesmo Pai e todos, pelo Batismo, radicalmente irmãos. Um claro exemplo de koinonia bíblica está na expressão “uns aos outros”, que aparece 16 vezes no Novo Testamento, mormente a palavra de Jesus “amai-vos uns aos outros como Eu vos amei” (Jo 15, 12). Esse “uns aos outros” tem uma tal força de comunhão que ainda precisa ser muito estudada.
Contrapor então a hierarquia à koinonia é um erro tão grave como contrapor poder e serviço na Igreja.
Sei que, na prática, muitas vezes é difícil pôr os pontos nos is ou tirar as vírgulas do chão. Mas também sei que, na Igreja, ainda há muitos sinais de um poder que não é servir mas servir-se, bem como há ainda aspetos de uma certa conceção de hierarquia que nos fazem lembrar aquela alternativa à democracia.
*Este artigo foi publicado na Edição desta sexta-feira do Diário Insular, na coluna Rua do Palácio.