A vida são dois dias… como é que os vivemos?

Por Carmo Rodeia

 

Foto: Igreja Açores/GM

Pablo Neruda tem um poema muito interessante, onde fala sobretudo da forma como vivemos a vida. E diz, num dado momento, que cada dia deve ser vivido não como se fosse o primeiro, nem o último, mas como se fosse o único. Não sei se coincide exatamente com o “hoje” que Jesus nos convida a viver, como tempo favorável, mas faz-nos acertar o passo com o relógio biológico num tempo em que a pressa e a ditadura do imediato nos consomem a vida, nos dias corridos de insatisfações, de frustrações e outros “ões” que dão cabo de nós e nos tornam piores como pessoas e como humanidade.

No mês em que faço anos, lentamente a aproximar-me dos 60, mais disponível para ser avó do que mãe –  sem deixar de o ser, mas ainda contagiada pelo ritmo frenético da profissão que abracei e que não consigo deixar, embora agora noutra condição – este “hoje” e este “único” atiram-me para os braços de um certo existencialismo que tem pouco de existencial e muito de pragmatismo.

Não viverei outro tanto, embora na minha família o género feminino seja rijo e de grande longevidade, para mal dos homens que nos aturam até ao fim. Gostava de chegar mais longe na idade passando a fasquia dos setenta, naquela conta bíblica em que depois contaria mais sete e assim poderia imaginar-me a perdoar tantas vezes quantas a que Jesus aconselhou, aspirando a ganhar o Céu que Ele nos disse que estava garantido seguindo as bem-aventuranças e apenas isso, sem necessidade de andar atrás de códigos e outras leis que às vezes parecem bem longe da misericórdia de Jesus. Mas, o futuro a Deus pertence e por isso, o melhor que tenho a fazer é ser neste hoje o melhor que posso, sempre ciente de que Jesus me quer bem tal como sou, embora me reserve sempre o melhor que eu alguma vez possa ser.

Temos dificuldade em pressupor um mundo cristão como outrora.

Vem isto a propósito de um título que encontrei quando fazia uma pesquisa no Google sobre o Cristianismo e, em particular uma afirmação do Papa Francisco sobre o seu alegado fim. De facto, temos dificuldade em pressupor um mundo cristão como outrora. Não é que o Ocidente seja anti-cristão; ele é simplesmente não cristão, pela simples razão de que já não se conhece o conteúdo da fé e Jesus Cristo, muitas vezes apenas mencionado como uma figura do passado e não como uma realidade presente. O que nos deve fazer refletir sobre a dramática ausência da Igreja no mundo de hoje, especialmente entre os jovens. Contamos pouco ou nada, porque eles gostam pouco de estruturas, ainda menos de estruturas demasiado debruçadas sobre si mesmas. Vários estudos apontam para o facto dos jovens, a nível europeu, se dizerem não seguidores de qualquer religião, que parece estar razoavelmente moribunda, o que não é de todo, uma exclusividade católica.

Prosseguindo centrada nos jovens e procurando encontrar argumentos para uma resposta a este tão propalado problema, diria que eles são indiferentes à religião, não porque dispensem uma relação com o transcendente, mas porque nós, sobretudo os mais velhos, temos sido razoavelmente incompetentes em proporcionar-lhes, ou sequer permitir que eles vivam uma experiência de vida, pessoal e comunitária, graças à qual se possam tornar cristãos. É claro que o mundo de hoje não favorece, com os seus modelos de vida, a descoberta da fé, mas isso não pode ser pretexto para a falta de propostas de vida que caracteriza muitas vezes a Igreja atual.

A fé não é um ato cego, mas um despertar para a grandeza da realidade.

Na Evangelii gaudium, o Papa Francisco (tenho tantas saudades dele…) escreve que hoje o anúncio cristão deve preceder o compromisso de defender os valores morais da Igreja. No mundo secularizado, o encontro, o testemunho cristão dirigido a todos vem em primeiro lugar. À Igreja pede-se que crie as condições que favoreçam o encontro do homem de hoje com o acontecimento cristão. Não apenas com dogmas ou com “valores” cristãos, mas com uma renovada experiência de vida graças à fé. Este encontro com Jesus ressuscitado e vivo é o que faz de nós cristãos. Parece-me…

Como afirma Bento XVI na sua encíclica Deus caritas est: “Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo” (§1).

A fé não é um ato cego, mas um despertar para a grandeza da realidade. Sempre que a sua verdade é colocada com simplicidade e determinação no âmago da existência cristã, a vida do homem é imbuída e reanimada por um amor que não conhece interrupções nem confins…. E o próprio universo revela uma “razão superior”.

“Cristão, que dizes de ti mesmo?” é uma pergunta que vai à essência da nossa identidade porque mais do que nos interpelar sobre nós mesmos nos coloca na relação com o amor de Jesus e na doação aos outros.

A interpelação que é feita aos cristãos açorianos no início de um ano pastoral, que é muito mais do que isso porque representa o começo de uma caminhada preparatória de uma celebração jubilar, – os 500 anos da diocese de Angra em 2034 (ainda não terei os tais 70 anos) –, ganha, neste contexto, uma importância acrescida.

“Cristão, que dizes de ti mesmo?” é uma pergunta que vai à essência da nossa identidade porque, mais do que nos interpelar sobre nós mesmos, nos coloca na relação com o amor de Jesus e na doação aos outros. O cristão não se define pelas suas próprias qualidades ou posses, mas por aquilo que se tornou ao responder ao amor de Jesus. Não se trata de uma pergunta do género “quem sou eu”, centrada em mim, em cada um de nós, mas a partir da minha – da nossa – relação com o projeto de Deus e o amor que dá sentido à existência.

A pergunta que me é colocada desafia-me a questionar sobretudo as consequências do meu batismo, o que me diferencia de um não batizado e o que deve estar sempre presente na minha ação, que me torne diferente e seja capaz de contagiar outros nessa diferença. E as perguntas feitas a partir daquele que foi o legado da aprendizagem, sugerem-me novas questões todos os dias da minha vida: sou seguidora de Jesus porque O vivo como o caminho, a verdade e a vida ou porque me ensinaram assim? Sou colaboradora deste caminho e desta verdade ou apenas os anuncio doutrinalmente?

Interpreto o amor de Deus promovendo a sua justiça e a sua bondade ou sinto-me amada e guardo este amor para mim, sem o conseguir levar a quem me está próximo, fazendo dele um tesouro pessoal, que guardo a sete chaves como fazem os ricos, cada vez mais ricos, diante dos bens materiais, numa espécie de avareza “scroogeana”, tão em voga nos nossos dias?

Anuncio-O como a esperança da minha vida e da humanidade ferida ou transformo-o numa espécie de utopia doutrinária que espera pela eternidade sem impulsionar neste mundo o dinamismo pessoal e social que esta esperança sugere para todos e não apenas para alguns que merecem o Céu?

E poderia continuar com as várias interrogações com que me debato diariamente, diante desta interpelação que vai ao âmago do meu coração e da minha vida. Por isso, não há uma resposta única e definitiva e, porventura, a única certeza a que ela me conduz é que, para me dizer cristã e para falar de Jesus, ter a consciência de que não basta o saber acumulado de séculos e de tradição. Não basta o que aprendi na catequese e que a minha família me transmitiu. Para me dizer cristã preciso de escutar uma voz nova, a voz do espírito, todos os dias, evitando refrões em jeito de cartilha, porque é a tradição, porque sempre foi assim ou porque as coisas de Nosso Senhor não se discutem e estão escritas num código qualquer.

Regresso aos jovens porque apesar dos meus quase 60 anos continuou a perguntar porquê, como se não houvesse amanhã e uma simples resposta porque sim, me tira do sério. Dizem-me os mais próximos que é porque sou jornalista e estou deformada pela profissão. Talvez para suavizar a inoportunidade de certas questões que não podem ser nunca confundidas com atrevido relativismo.

Por isso, como sugeriu o Papa Bento XVI, que bom seria que durante os próximos tempos, enquanto pessoas que se dizem cristãs, pudéssemos ter abertura à dúvida, e que a pergunta desafiadora – Cristão, que dizes de ti mesmo? – nos impelisse a partir em busca da resposta e, neste desafio, conseguíssemos proporcionar as condições para este encontro pessoal e transformador, que é o que nos dá um novo horizonte à vida. Não em compêndios ou certezas canónicas, mas na experiência da vida e do encontro com o mundo. Porque é lá, sobretudo, que encontramos Jesus. Todos os dias.

* Este texto foi publicado no PontoSJ

 

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