Da intolerância tolerada

Por Carmo Rodeia

Às vezes pergunto se a questão é ideológica e comportamental ou se é mesmo epistemológica, mas a realidade é que a sociedade está hoje cada vez mais intolerante. E a intolerância manifesta-se em vários domínios tendo como sinal mais dramático a violência física e verbal, entre políticos, entre cidadãos, entre a família, entre casais… O universo moral até parece outro. Se calhar não parece, é mesmo.

Outro dia, a falar com uma amiga sobre as relações amorosas dos jovens, dei-me conta de que hoje é difícil (cada vez mais difícil!) o respeito e a tolerância nas relações que, por isso, duram pouco ou estão sempre em risco eminente de terminar.

Na minha infância cedo aprendi que não era o centro do mundo, que existiam outras pessoas com outras ideias que tinha de ter em conta e de respeitar. Desde logo em casa, na família, no convívio social, na escola, na universidade, no trabalho e na vida de todos os dias. A ideia de conviver com o pluralismo estava no próprio ar que respirava.

A tolerância, isto é, a capacidade de aceitarmos a presença de algo ou de alguém de que não gostamos ou de quem discordamos fazia parte da educação, por mais conservadora que fosse a linha de orientação em casa.

Os nossos pais ensinaram-nos a ser tolerantes com os outros, sobretudo os que vínhamos de famílias cristãs, que toda a vida lutaram pelos direitos, liberdades e garantias de todos independentemente da sua origem, sexo, raça ou religião. E, mesmo quando a família não ia tão longe, a rua ensinava-nos a respeitar e a pensar nos outros. Ainda que desaprovássemos o seu comportamento, sem que isso requeresse que abandonássemos a nossa discordância ou abdicássemos dos nossos valores. Nada nos deixava sossegados, porque havia sempre lugar para uma saudável e compreensível provocação pessoal, provocação aos poderes e ao próprio modo de se entender a vida, a sociedade, a política. Muitas vezes na cabeceira do nosso inconformismo batíamos com a cabeça na parede, mas os galos não nos faziam mal. Bem pelo contrário davam-nos força para o próximo desafio, sempre com civilidade.

A propósito da tolerância John Locke, na sua Carta sobre a Tolerância, lembrava que agir com tolerância evita o caos social e político que recai sobre todos. E acrescentava, que a tolerância é conduta imprescindível para se conquistar a paz, o bem, o respeito pela dignidade humana e o progresso da relação entre povos. Três séculos depois, a questão essencial da tolerância continua estranhamente bem viva, permitindo-nos a pergunta básica: como conviver com a diferença, neste mundo cada vez mais marcado por conflitos de vária ordem?

A resposta é-nos dada pelo próprio: “Liberdade absoluta, liberdade justa e verdadeira, liberdade equitativa e imparcial é aquilo de que estamos necessitados”.

Quando a tolerância norteia atitudes, alcança-se um grau admirável e duradouro de convivência; em contraposição a intolerância leva ao crescimento das segregações, do ódio e das disputas que alimentam os focos de guerra, gerando xenofobias e massas de refugiados perseguidos. É assim na sociedade; é assim nas famílias, na igreja e no trabalho, vezes demais afetados pela desarmonia.

E isto só não é mais evidente porque vai crescendo de forma latente, até haver o tal clique que desperta quando o outro pensa de maneira diferente de mim, professa uma religião diferente da minha, tem um comportamento diferente do meu, ou quando a sua maneira de estar ou de ser me afeta diretamente. Hoje, o lugar da tolerância é a bolha de cada um. E tudo o que for contra essa bolha, ou a puser em causa, deve ser intolerado.

É isto que estamos a semear, sobretudo junto dos mais novos aos quais demos um telemóvel em vez da rua, um jogo online em vez de uma brincadeira com amigos em casa ou ainda os gostos do facebook ou das sms em vez de um abraço ou de um mimo. Ou quando votamos de determinada maneira porque o discurso é igual ao que pensamos (embora não o digamos) ou quando escolhemos este ou aquele em função do que promete dentro da bolha…

Não sei mesmo se não estamos a conseguir um feito inaudito: sermos tolerantes, contribuindo ativamente para a construção da sociedade mais intolerante de todas.

Bom Ano de 2019.

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