De “Principezinho” de Saint-Exupéry a “Príncipe” de Maquiavel

Foto: Igreja Açores

Pelo padre José Júlio Rocha

O filme “A Infância de um Líder”, de Brady Corbet, ganhou vários prémios desde que veio à cena, em 2015. É uma longa-metragem perturbante, macabramente musicada, em tons violentos e obscuros, que narra a vida de um rapaz, filho de um diplomata americano e de uma mãe possessiva de origem alemã. Vivem na França, fins da Primeira Guerra, por alturas do dramático Tratado de Versailles. O filme é perfeito e assustador, realista até à medula, uma espécie de “film noir”.

A família é disfuncional. Um pai ausente e severo, empenhado nas negociações do fim da guerra, uma mãe infeliz e insatisfeita que descarrega toda a sua perturbante frustração no filho, uma relação de amor-ódio, possessiva, doentia, quase erótica. A criança cresce nesse ambiente tenso, onde a mãe defende o filho contra o pai, a empregada, a professora, o mundo. Prescott, o miúdo, vai-se transformando num pequeno Maquiavel. Infinitamente caprichoso, mimado e frustrado ao mesmo tempo, não precisa de olhar a meios para atingir os seus fins, que atinge sempre, manipulando os pais e conseguindo, na base da chantagem emocional, do amuo, dos gritos, das respostas irritantes, das tramas às escondidas, levar a água ao seu moinho.

Numa das cenas, um jantar de gala em casa, está o embaixador dos Estados Unidos. Na simpatia formal do início dos rituais da mesa, o pai pede ao filho que faça uma pequena oração antes da comida. O miúdo olha para o pai com uns olhos cinzentos de frios, baixa ligeiramente as pálpebras numa expressão de indizível desprezo e declara, frontalmente: “Não!” O constrangimento é visível, sorrisos incomodados, cabeças baixas de vergonha, todos muito embaraçados menos um, o miúdo, que continua imperturbável. Sem contágio de emoções, o rapaz cresce fazendo crescer o seu ego gigantesco: sempre, e à custa de todos os meios, conseguiu o que queria. Não ama ninguém, não é amado por ninguém, nem pela mãe, que o absorve na sua insaciável ânsia de se projetar no filho.

No fim do cinema ele aparece já adulto, líder amado apaixonadamente pelo povo, que iludiu com os seus discursos de apelo ao orgulho pátrio, incitando ao ódio e à violência, aclamado pelos cidadãos que aceitam um líder que não quer outra coisa senão o poder absoluto. O filme é uma paródia indireta à infância de Hitler.

A sede insaciável de poder, que une todos os tiranos do mundo, nasce na infância, em famílias disfuncionais, que criam pequenos monstros, capazes de tudo para satisfazerem a sua insaciável sede de serem o centro do mundo. Ninguém os impedirá de subir, de passar por cima, nada os impedirá de chantagear seja quem for. São crianças – e há muitas – sem o sentido do bem e do mal, sem consciência ética, cujo único desejo é um EU infinito.

Já vimos muitos homens desses chegarem ao poder. E continuamos a ver. Quando nos perguntamos o que é que se passou a 6 de janeiro de 2021 no Capitólio americano, ou o que aconteceu a 8 de janeiro de 2023 em Brasília podemos perceber a personalidade dos líderes que estiveram, ao menos moralmente, por detrás de tais barbáries. São duas crianças que não cresceram na sua imensa capacidade de embirrar. Dois seres humanos que, se olharmos para a sua biografia, foram educados num mundo disfuncional, onde aprenderam a cultivar um ego enorme, sedento de poder, porque o poder é a forma mais refinada de exercer o egoísmo. Ergueram a sua torre de Babel, quiserem ser deuses, os únicos salvadores das pátrias feridas. A arrogância e o ódio estampavam-se nos seus discursos, um ódio que apaixonava.

Quando Hitler se suicidou, acabando com o nazismo e a Guerra, Goebbels, ministro da Propaganda Nazi, e sua mulher, Magda, decidiram matar os seus seis filhos com cianeto no bunker, porque, para eles, não havia vida depois do nazismo. Algo semelhante se passa com milhões de americanos e brasileiros: depois de Trump e de Bolsonaro não há progresso, não há justiça, não há poder, não há vida.

A grande questão que se põe não é saber como aparecem líderes assim. A questão é compreender como é que as multidões se apaixonam tão desesperadamente pelo abismo, como é que não vêm o precipício a dois passos, como é que se repetem os mesmos erros históricos, como é que não enxergam que é só a sede de poder e de adoração que move esses estadistas. Vladimir Putin é só mais um exemplo a acrescentar.

A Carta Encíclica do Papa Francisco “Fratelli Tutti” é uma profecia dos nossos tempos. Tendo em conta que, dos princípios da Revolução Francesa, a liberdade e a igualdade foram praticadas até ao exagero e a fraternidade praticamente esquecida nos sistemas políticos, o Papa vem apelar, precisamente, ao respeito pela fraternidade. Porque não o amor e a amizade na política? Uma utopia? Uma ideia piedosamente cristã? O facto é que palavras como “diálogo” ou “respeito” têm vindo a desaparecer dos discursos de poder. Extremaram-se posições, o inimigo é um alvo a abater sem olhar a meios. “Fake-news”, mentiras descaradas, calúnias, difamações, ameaças embelezam muitos espectros políticos da atualidade.

Francisco apela à fraternidade. Mas não à fraternidade entre iguais. O adversário também é meu companheiro de viagem, quando queremos construir um país melhor, um mundo mais humano. Quando o Bem Comum, valor mais importante num Estado de Direito, é desprezado em prol do bem sectário só dos adoradores, quando o vil poder é a única coisa que interessa, então entramos numa derrapagem perigosa.

O filme “A Infância de um Líder” faz-me lembrar que a aposta na família e na educação são questões fulcrais em todas as variantes da vida, política incluída. É que hoje, cada vez mais, há crianças que estão a ser magistralmente educadas para serem o centro do mundo. E muita gente gostará de lhes beijar os pés.

*Este texto foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio.

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