Divórcio à italiana

Pelo Pe Teodoro Medeiros

O som do bandolim é, talvez, o primeiro indício do que aí vem: uma história de intriga siciliana, uma história de amor, uma comédia de costumes de mafiosos. Ferdinando é casado há 12 anos: mas não ama a sua esposa (cujo romantismo o aborrece solenemente… ou será do generoso buço que ela ostenta? Não nos será dado saber).

O filme é de 1961 mas envelheceu de forma invejável: o ritmo tem o seu quê de frenético; a voz off despeja informações cómicas e mordazes; os pensamentos de Ferdinando são apresentados em momentos chave, dando mais força à subtileza do humor. Trata-se de uma comédia à italiana mas sem recursos patetas nem cenas de fraco gosto.

Desde o início, apresenta-se a vila, com os 18000 habitantes, 4300 analfabetos, 24 igrejas barrocas do último seiscentos e o grupo dos homens da praça que fala de tudo. E toda a gente na igreja, ao domingo, ouvindo o padre explicar do púlpito qual o partido que defende os princípios da Igreja, no qual devem os cristãos votar… logo sabemos que o protagonista tem amor pela filho dos vizinhos, Ângela.

Apaixonado de forma desesperada, acontece-lhe ler as notícias de um julgamento singular: uma mulher de 26 anos matara o marido, numa causa “justa”, ele fora-lhe infiel. E aqui começa o qui pro quo do filme: se ele matasse a mulher, por razão semelhante, não teria problema em cumprir 4 ou 5 anos de cadeia e casar depois com Ângela.

Conseguindo pôr em sua casa um apaixonado pela esposa, o plano entrou em andamento. E, tendo os pombinhos fugido para outras paragens, tudo estava em bom caminho. Só faltava a vergonha pública, o elemento mais importante: que a vila falasse de si nas costas, que lhe enviassem os amigos cartas dando conta do ultraje. Fechado no quarto, ele catalogava-as segundo tivessem ou não referência ao seu novo estatuto, provas para a sua defesa penal.

Com todo o cinismo deste mundo, ei-lo a sair de casa, finalmente, como cão escorraçado pela multidão; com ar abatido e sofrido, ostenta uma prostração merecedora de compaixão. Enquanto isso, o seu espírito rejubilava, medindo cada momento com cinismo, no meio da suposta vergonha. Até a irmã lhe revela que o noivo a abandonou e lhe mostra a carta enviada. Ele lê-a de relance, vê lá a palavra que procurava, sorri de felicidade, mete-a no bolso e diz:

-”Tenho muita pena…”

Um dos pontos altos é a figura do advogado, defensor de tais defensores da própria honra. As suas tiradas durante os julgamentos são discursos absolutamente soberbos. Com a ajuda de adjetivos profusos mas incisivos, ele apresenta um perfeito domínio do efeito comunicativo; inspirador, capaz de evocar ideais ou a cruel realidade na mesma penada, ele equilibra a submissa referência a Deus com outras que, pela sua natureza, costumam reservar-se para o recôndito covil da maledicência.

Evocando os evangelhos, ele proclama os criminosos factos com laivos sublimes de oratória, traindo assim, porventura, a função quase salvífica que atribui aos mesmos. Conquistando o apreço e o suspiro, o arrebatamento da assistência, ele eleva-os, sem grande esforço, àquela espécie de transe hipnótico a que até os espíritos mais racionais cedem se na presença de um terrível profeta.

É assim que ele submete todos à inevitabilidade da conclusão: esmagado pela própria vergonha, conduzido pelas circunstâncias contrárias, oprimido por pensamentos de um destino inapelável na sua força e, finalmente, transido pela recordação martelante de uma pistola convenientemente carregada e acessível, o esposo (a) enganado tinha defendido o único valor que lhe restava: a sua honra!

O filme está editado no formato bluray. A resolução é, portanto, de 1080p: apesar de não ser uma cópia restaurada, trata-se de um preto e branco de “luxo”, um autêntico festim para os olhos. O filme recebeu Óscar para melhor argumento, melhor comédia em Cannes e Marcello Mastroiani recebeu o Globo de Ouro para melhor ator.

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