Dos incêndios e outros demónios

Por Carmo Rodeia

Os incêndios voltaram às notícias e as mortes deles derivadas também. Todos os anos é a mesma coisa. Este ano a única novidade é que os incêndios partilham palco noticioso com a covid-19 e, por isso, chagaram mais tarde à abertura dos telejornais e à ocupação das primeira páginas.

Víamos e sabíamos menos até que um bombeiro morreu. Depois outro e agora outro. Quantos, entretanto, ficaram feridos até ao momento, já não consegui registar. Mas, lembro-me bem do desabafo do Presidente da República: “A pandemia afetou a prevenção dos incêndios. Os meses que eram meses cruciais da transição da primavera para o verão foram meses acabados por não existir”. A resposta do governo veio pela boca do Ministro Cabrita, como sempre, prolixo: “O ordenamento florestal é uma responsabilidade de todos os portugueses e tem que ver com uma dimensão de transformação da floresta que tem de ser prosseguida todos os dias e levará a anos de intervenção. Essa é a prioridade!”. Fiquei esclarecida. Aliás, a saúde, os incêndios, a paz social,  a economia, tudo depende dos cidadãos, mas de cidadãos livres, esclarecidos e dotados de capacidade critica.

Nada menos claro: temos um papel importante na construção de uma sociedade, temos de ser cidadãos mais ativos politicamente. E, como cristãos, seguidores de Cristo, somos, ainda mais, impelidos a não nos calarmos no meio das injustiças e das desigualdades sociais. Hoje, como ontem, viver a fé no campo da política exige do cristão católico ir além de um proselitismo vazio. Precisamos levar, de verdade, o Evangelho de Jesus Cristo às realidades duras e desafiadoras nos dias atuais. Só assim seremos capazes de manifestar a atitude samaritana num mundo golpeado e ferido.

O que é que esta conversa, meio beata, tem a ver com os incêndios e com a pandemia, perguntarão.

Tudo! “Estamos no mesmo barco e ninguém se salvará sozinho” dizia-nos o Papa a 27 de março. Mas, na verdade, estamos cada vez mais sozinhos.

Nas mesmas notícias que nos anunciam os incêndios ouvimos e vemos as queixas das populações a dizer que lutam sozinhas contra as chamas porque os meios, ou tardam ou são insuficientes. No mais recente discurso do medo, imposto pelos governos no que respeita à pandemia, somos convidados a ficar em casa, sozinhos, em nome de uma responsabilidade social. Os mais velhos se não morrem do vírus morrem de solidão. Num e noutro caso “comemos e calamos” as imposições das doutas entidades públicas cuja tarefa deveria ser pensar, planear, decidir e dotar. Três verbos que não rimam mas encostam como diz o Zé povo. Mas é impossível alguém ter tempo para fazer isso tudo quando efetivamente mal lhe chega o tempo para aparecer e responder, verbos que rimam com o tempo mediático atual.

Marcelo e Cabrita têm razão: a pandemia veio baralhar tudo e fazer das nossas vidas um caos. Num contexto de doença, associada a alguma esquizofrenia coletiva, marcada por uma especial censura social sobre o que é ou não é um comportamento prudente para impedir a propagação do vírus, por vezes até moral, cada um de nós é responsável pela sua saúde ciente de que protegendo-se a si está a proteger os outros.

Também é verdade que, se cada um de nós, que tem um pouco de terra, fizer a limpeza da sua mata, não fizer churrascos inadvertidamente ou não fizer queimadas em tempo de calor também estará a contribuir para diminuir o risco de incêndio quando todos sabemos que as altas temperaturas do verão são o rastilho condutor. Mas, certamente, a boa ação de cada um não será suficiente para resolver os males de todos. É para isso que serve o Estado. Não para meter medo ou fazer discursos moralistas, que nos toldam a capacidade de pensar, agir e fazer. Os verbos voltam a não rimar entre si , mas chegam para viver sem perder de vista o essencial.

 

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