Esta pandemia “ tem de nos fazer ouvir o grito da terra e o dos pobres”, afirma assistente da Comissão diocesana Justiça e Paz

Numa conversa moderada por Tatiana Ourique, o padre Júlio Rocha e a professora Rosalina Gabriel refletem sobre os efeitos da pandemia a partir da Enciclica Laudato Si

A encíclica Laudato si, escrita há cinco anos pelo Papa Francisco, bem pode ser uma inspiração para o momento atual, projetando um futuro mais justo e sustentável, mas para isso é preciso “ termos esforços conjuntos da humanidade inteira” que nos “permitam ouvir os gritos da terra e dos pobres”.

O desafio é lançado pelo assistente da Comissão Diocesana Justiça e Paz, padre José Júlio Rocha, que juntamente com a professora da Universidade dos Açores Rosalina Gabriel, refletiu sobre a primeira grande encíclica verde do magistério da Igreja e que, por exortação do Papa Francisco, estará  até 2021 a ser debatida e refletida pelas famílias, pelas academias e pela sociedade em geral.

“Se houver um esforço conjunto para mudar o paradigma do desenvolvimento, a conversão ecológica é possível e tem de ser feita, porque a emergência ambiental é muito mais premente e, como disse o Papa, estamos todos no mesmo barco”, afirma o padre José Júlio Rocha.

Depois da pandemia, que “ainda não passou”, “a prioridade é, sem dúvida, que as pessoas tenham saúde, comida na mesa e trabalho”, mas “há outras coisas igualmente importantes e a ecologia é uma delas”.

“Com esta pandemia a natureza  conseguiu respirar, como nos mostram alguns indicadores de poluição ambiental, e isso veio mostrar-nos que estamos a ter uma oportunidade no meio desta desgraça”, esclarece o sacerdote apontando para a necessidade de termos de “tirar consequências disto tudo”.

“Estas mudanças, a que fomos sujeitos e obrigados, são uma oportunidade e provam-nos que a vida é possível usando outros critérios. É possível vivermos melhor com menos consumo” alerta Rosalina Gabriel.

Citando o eticista jesuíta Luís Archer, a professora da Universidade dos Açores lembra que “os momentos extremos são como alertas do Espírito Santo para fazermos inversões. Com todo o sofrimento que esta doença está a provocar, e não o quero minimizar, conseguiremos ter criatividade para pensar novas soluções para melhorar o mundo. Temos de pensar que existem outros caminhos”, acrescenta.

No dia do lançamento do ano especial para “chamar a atenção para o grito da terra e dos pobres”, o Papa Francisco destacou o final da semana ‘Laudato Si’, que leva agora a um ano especial de aniversário, “para refletir sobre a encíclica”.

“Convido todas as pessoas de boa vontade a aderir, para tomar conta da nossa comum e dos nossos irmãos e irmãs mais frágeis”, apelou o líder da Igreja Católica.

O ano dedicado à ‘Laudato si’ é promovido pelo Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral (Santa Sé), começando com uma “oração comum pela terra e pela humanidade”.

O ano especial conclui-se em 2021 e tem como objetivo principal “propor um compromisso público comum com a sustentabilidade total a ser alcançada em sete anos”.

“Estão envolvidas as famílias, dioceses, ordens religiosas, universidades, escolas, unidades de saúde e o mundo dos negócios, com especial atenção às empresas agrícolas”, anunciou o Vaticano.

Neste documento, Francisco pede “um olhar diferente, um pensamento, uma política, um programa educativo, um estilo de vida e uma espiritualidade” que consigam resistir ao “avanço do paradigma tecnocrático”.

“Uma ecologia integral requer abertura para categorias que transcendem a linguagem das ciências exatas ou da biologia e nos põem em contacto com a essência do ser humano”, escreve.

O Papa propõe uma mudança de fundo na relação da humanidade com o meio ambiente, alertando para as consequências já visíveis do aquecimento global e das alterações climáticas.

A encíclica defende uma “cidadania ecológica”, para mudar “hábitos nocivos” de consumo e comportamentos “suicidas” da humanidade, rumo a uma “corajosa revolução cultural”.

“Julgo que a covid-19 vem consciencializar-nos disto: ou sentimos que estamos no mesmo barco e remamos para o mesmo lado ou o que pode esperar-se é um tempo escuro, e toda a humanidade sofrerá”, adianta o padre José Júlio Rocha.

O teólogo lembra que esta mudança de paradigma tem de nos fazer rever a ideia de combater a pobreza.

“A proximidade da pobreza incomoda. Veja como a Europa entrou em pânico com os refugiados em massa. Julgo que vai aumentar mais e, francamente, não sei se nós ocidentais temos capacidade de dar uma resposta humanitária à crise que vai chegar” alerta o sacerdote.

“A nossa ideia de solidariedade ainda passa por darmos as sobras aos pobrezinhos; temos pena dos outros mas na verdade não partilhamos do que nos faz falta; damos as sobras e isto também tem que ser revisto”, sublinha.

“A aposta tem de ser no estudo, no conhecimento, na inovação” refere por seu lado Rosalina Gabriel. “Só assim poderemos encontrar melhores caminhos e pensar o que queremos efetivamente” adianta ao reconhecer que “é certo que o poder está muito desequilibrado. Os políticos até podem ter mais poder mas não têm mais razão ou dignidade. precisaremos de elevar os padrões de exigência para nós e para os outros”, conclui.

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