Pelo padre José Júlio Rocha
A Exortação Apostólica “Dilexit Te” (Eu Amei-te) acabou de sair. É o primeiro documento do Papa Leão XIV e insere-se, plenamente, no corpo da Doutrina Social da Igreja. Note-se que esta Exortação Apostólica foi querida e desenhada pelo Papa Francisco, pelo que podemos considerá-la uma obra a quatro mãos, e compreender, noutra dimensão, o quão próximo está o Papa Leão XIV do Papa Francisco na grande questão dos pobres, excluídos, marginalizados, migrantes.
No início da Exortação, o Papa dá o mote: «Não estamos no horizonte da beneficência, mas no da Revelação» (número 5), querendo com isto dizer que o amor cristão pelo pobre, em toda a sua dimensão, não é apenas um setor da Igreja, mas é parte integrante da sua essência. É este o fio condutor de todo o documento: «A realidade é que, para os cristãos, os pobres não são uma categoria sociológica, mas a própria carne de Cristo» (110). Neste sentido, o Papa recorda a Assembleia de Puebla, dos Bispos latino-americanos, onde foi plasmada a ideia de a Igreja viver, na sua essência, a “opção preferencial pelos pobres”, que já faz parte do seu Magistério (16). Leão vai buscar à parábola do Juízo Final (Mateus 25) aquilo que ele considera a chave para a plenitude de vida, e ela está – porque alicerçada no amor a Deus – no consequente amor ao próximo, sobretudo o mais pobre: «As palavras fortes e claras do Evangelho devem ser vividas sem comentários, especulações e desculpas que lhes tirem força. O Senhor deixou-nos bem claro que a santidade não se pode compreender nem viver prescindindo destas suas exigências» (28). O Papa ainda vai mais longe, afirmando que «a caridade não é uma via opcional, mas o critério do verdadeiro culto» (42). Todo o documento está, pois, orientado nesta direção: Na essência do cristianismo está o pobre, rosto de Cristo e destinatário primeiro da Sua ação. O próprio Jesus é apresentado como pobre entre os pobres, rejeitado em Belém, Refugiado de Herodes, migrante no Egito, Expulso da própria terra, precisamente quando anunciava que a Sua Boa-nova era para os pobres (19).
Quase todo o capítulo III é dedicado à forma como, ao longo da sua história, a Igreja viveu o essencial amor ao pobre. Desde as primeiras comunidades que se ajudavam na sua pequenez, repartindo tudo entre si, passando por personagens como São Lourenço, Santo Agostinho e outros, referindo o aparecimento das ordens mendicantes, dos missionários e dos grandes mestres do amor ao outro dos últimos séculos, o Papa faz um resumo da extraordinária ação da Igreja que nunca renunciou à caridade para com os desfavorecidos… até ao século XX. Na verdade, a “Questão Social” do século XIX revelou, no meu entender, uma fraqueza da Igreja: tenho a opinião que a Igreja se atrasou a defender os oprimidos da Revolução Industrial e Marx chegou lá primeiro. Isto trouxe como consequência o facto de que a “Questão Social” se tornasse eminentemente política e a Igreja perdeu o seu espaço. Ainda hoje e, se calhar, sobretudo hoje, lutar pelo pobre na Igreja carrega o preconceito de se ser “cristão de esquerda” ou “vermelho”. Desviou-se para a berma do caminho um dos fundamentos da ação da Igreja. Para a sociedade, a Igreja não se deve meter na política e deve reduzir-se a rezar e a celebrar privadamente os louvores de Deus. É contra isso que a Exortação, de alguma forma, se insurge: «Também os cristãos, em muitas ocasiões, se deixam contagiar por atitudes marcadas por ideologias mundanas ou por orientações políticas e económicas que levam a injustas generalizações e a conclusões enganadoras. Observar que o exercício da caridade é desprezado ou ridicularizado, como se fosse uma fixação somente de alguns e não o núcleo incandescente da missão eclesial, faz-me pensar que é preciso ler novamente o Evangelho, para não se correr o risco de o substituir pela mentalidade mundana» (15).
Para o Papa Leão, no meio disto tudo, o grande pecado é a indiferença: «O cristão não pode considerar os pobres apenas como um problema social: eles são uma “questão familiar”. Pertencem “aos nossos”. A relação com eles não pode ser reduzida a uma atividade ou departamento da Igreja» (104). A parábola do Bom Samaritano torna-se, também aqui, central: com quem me identifico: com o sacerdote, o levita ou o samaritano? A resposta que dermos a esta pergunta marcará o nosso destino como cristãos: autênticos ou pertencentes à incómoda e longa lista de fariseus que se acham mais Igreja do que os outros, sendo, paradoxalmente, muito menos.
A dignidade do outro enquanto pobre leva Leão XIV a recordar algumas das iniciativas mais arrojadas da Doutrina Social da Igreja. O Papa evoca o princípio básico do “Destino Universal dos Bens” como conquista fundamental da dignidade humana: todo o ser humano tem direito a usufruir dos bens da Terra. A Terra é de todos. Por isso a verdadeira justiça cristã considera que p10or esta razão, «quem usa desses bens, não deve considerar as coisas exteriores que legitimamente possui só como próprias, mas também como comuns, no sentido de que possam beneficiar não só a si, mas também aos outros» (86). Ou seja, a doutrina cristã ensina que o que tens a mais não é teu quando ao teu irmão falta o essencial.
Leão XIV também não se inibe de acusar que esta economia mata, continuando o magistério dos seus antecessores: «É necessário, portanto, continuar a denunciar a “ditadura de uma economia que mata” e reconhecer que enquanto os lucros de poucos crescem exponencialmente, os da maioria situam-se cada vez mais longe do bem-estar daquela minoria feliz. Tal desequilíbrio provém de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira. Por isso, negam o direito de controle dos Estados, encarregados de velar pela tutela do bem comum». (92).
Gostaria ainda de ter tempo e espaço para referir o que Leão XIV diz sobre a educação como matéria prima da libertação da pobreza, uma realidade a que a política, desgraçadamente, fecha os olhos porque custa muito e os seus resultados só aparecem a longo prazo, o que não abona em eleições. E também a referência preferencial aos migrantes: «A Igreja, como mãe, caminha com os que caminham. Onde o mundo vê ameaça, ela vê filhos; onde se erguem muros, ela constrói pontes. Pois sabe que o Evangelho só é crível quando se traduz em gestos de proximidade e de acolhimento; e que em cada migrante rejeitado, é o próprio Cristo que bate às portas da comunidade.» (75)
Muitos cristãos não vão gostar deste texto. Eu acho-o libertador.