Nem pão, nem alforge, nem dinheiro, nem duas túnicas

Foto: Igreja Açores

Pelo padre José Júlio Rocha

A história da minha vocação começa aos oito anos e eu já tive a oportunidade de a contar por aqui. Aos oito anos, quem sabe distinguir a mão esquerda da mão direita é sobredotado. Logicamente, eu não sabia o que era ser padre. Não é que eu gostasse de andar na sacristia nem de acolitar. Também não era adepto de celebrar missinhas em casa, consagrando bolachas e vestindo as saias da mãe. Não. A minha vocação nasceu da vontade de ensinar os meus amigos a rezar e a fazer o bem. Influenciou-me o bom padre João Penacho, sempre bem-disposto e passageiro, dono de sorriso fácil.

Aos 13 anos ingressei no Seminário e ainda não sabia bem distinguir as duas mãos, mas a vocação é um caminho com sinais de pista, onde cada um leva ao próximo, sem sabermos bem onde é o fim e confiando em Quem nos traçou o caminho. Só comecei a entender bem a minha vocação quando percebi a verdadeira razão desta: Jesus Cristo. Servir Jesus através da Igreja. Jesus tornou-se para mim o modelo absoluto, a Mensagem perfeita, o amor feito ser humano, a razão pela qual valia a pena dar a vida, porque ninguém dá a vida por uma causa. Dá-se a vida – sempre – por alguém.

Nunca me apaixonei pela figura de um Cristo “pantocrator”, Senhor do mundo, glorioso Rei do Universo, Senhor da Glória, entre palmas e aclamações.

Jesus, o Deus feito homem, nasceu sem-abrigo, envolto em paninhos e deitado numa manjedoura, porque não havia lugar para Ele. Foi um refugiado no Egito, porque Herodes O queria matar.

No programa da Sua vida proclamou bem-aventurados os que choram, os pobres, os humildes.

Nunca vi Jesus a alargar as filactérias ou alongar as borlas do manto, vestir-se de ouro ou linho fino no Templo ou nas sinagogas. Nem a tocar sinetas nas esquinas ou ocupar os primeiros lugares nas assembleias.

Vi-O nos barrancos dos leprosos, a tocar neles, nas tabernas dos pecadores, a comer com eles, na outra margem do lago, a sair da Sua terra e de Si; nas casas dos doentes, nos montes de rezar, na barca com os discípulos, nas ruas que os homens pisam. Jesus não tinha onde reclinar a cabeça.

Os discípulos achavam que se deviam organizar, estruturar e, por isso, discutiam sobre quem deles era o maior, o mais competente, o mais importante. Jesus avisou-os severamente contra essa medonha tentação, ao dizer que quem quiser ser grande seja servo, quem quiser ser o primeiro seja o último. Que O imitassem, porque Ele veio para servir, não para ser servido.

No Templo, na parábola, foi o publicano que bateu no peito que saiu justificado, não o fariseu que se manteve de pé a rezar o desprezo.

Ninguém se fizesse tratar por pai, doutor ou mestre, porque, Esse, só há um e todos os homens são irmãos. Renunciar a si mesmo e tomar a sua cruz era condição necessária para O seguir.

Apreciou o gesto da viúva pobre, que deitou tudo no tesouro do Templo, mais do que todos os outros.

Num Reino dos Céus, onde os primeiros serão os últimos e os últimos serão os primeiros, exortou a que, quando fôssemos convidados para um banquete, não ocupássemos o primeiro lugar.

E quando enviou os discípulos a anunciar esse Reino dos Céus, ordenou-lhes que partissem, que nada levassem pelo caminho, a não ser um cajado: nem pão, nem alforge, nem dinheiro, nem duas túnicas e apenas um par de sandálias. Nada que pesasse, que impedisse de caminhar.

Para Ele, fé e humildade eram irmãs, como provou, ao elogiar a fé humilde do centurião que não era digno de receber Jesus na sua morada.

Como seria difícil um rico, daqueles que vestem púrpura, ouro e linho fino e se banqueteiam esquecendo os Lázaros, entrar no Reino dos Céus!

Bendisse o Pai, porque revelou as verdades aos humildes e aos pequeninos e convidou-nos a ser como as crianças para recebermos o Reino dos Céus.

Morreu humilhado, da forma mais estranha, com aquele brado “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?”

Mas, pouco antes disso, e como se não tivesse bastado toda a Sua vida, na última ceia, “Jesus, sabendo perfeitamente que o Pai tudo lhe pusera nas mãos, e que saíra de Deus e para Deus voltava, levantou-se da mesa, tirou o manto, tomou uma toalha e atou-a à cintura. Depois deitou água na bacia e começou a lavar os pés aos discípulos e a enxugá-los com a toalha que atara à cintura.” Mandou que os discípulos fizessem o mesmo.

O manancial de palavras e atos de Jesus convidando à pobreza, à humildade e ao serviço vai muito além do que eu escrevi.

A Sua Igreja, a portadora da Mensagem do Reino dos Céus, devia ser sempre assim: partir sem duas túnicas e sem alforge, não servir a Deus e ao dinheiro, não ocupar os primeiros lugares, não alargar borlas nem filactérias, não se envaidecer com as riquezas e os confortos deste mundo, fazer-se humilde, lavar os pés ao irmão. Que rejeitasse tudo o que era poder humano.

Caramba! Como tudo seria tão diferente…

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