O Dever e A Crença sobrevivem apesar das “enormes” dificuldades financeiras

Os dois únicos jornais propriedade da igreja católica lutam com falta de recursos financeiros e, sobretudo humanos

Os semanários O Dever e A Crença, que se publicam nas Lajes do Pico e em Vila Franca do Campo, na ilha de São Miguel, respetivamente, com 98 e 100 anos, lutam diariamente pela sobrevivência quer em termos financeiros quer em termos de recursos humanos, reconheceram os atuais diretores que participaram nas Jornadas Diocesanas de Comunicação Social que decorreram esta quinta feira, em Vila Franca do Campo, na ilha de São Miguel.

“ Perante este cenário não vejo que ele (O Dever) seja um meio de grande evangelização sobretudo quando nos impõem uma página para a igreja, com medo que nos cortem os apoios” disse o Diretor do Dever, Pe João Bettencourt das Neves.

As receitas do jornal, tal como no caso da Crença, vêm em parte de apoios governamentais que excluem a imprensa confessional e da publicadade comercial, mesmo assim “são escassas”.

“Esta é a verdadeira censura de hoje e não sei se tão ou mais infame que a praticada antes do 25 de abril” referiu ainda o Pe João Bettencourt Neves que é diretor do Jornal há dois anos, por acumulação com a paróquia das Lajes, propriet+ária do periódico.

A decisão do pároco ser diretor do jornal já vem de trás, depois da década de 40 e do jornal ter passado da paróquia do Topo, na ilha de São Jorge para a das Lajes, da ilha do Pico.

Fundado pelo Pe Xavier Madruga, O Dever é um dos 3 jornais que existem na ilha Montanha e o único com uma linha editorial fortemente inspirada na doutrina social da Igreja. Tem uma tiragem de 1100 exemplares quase todos distribuídos pelos assinantes, a esmagadora maioria residente no concelho das Lajes, mas também alguns no Continente e outros na diáspora.

O jornal todos os meses acumula um prejuízo de cerca de 800 euros e há muito que sobrevive “com dificuldades”, tendo neste momento salários em atraso e uma divida com a gráfica que o imprime, na ilha vizinha do Faial.

“Esperamos continuar a sobreviver, apesar das dificuldades, pelo menos até fazermos cem anos”, disse o seu diretor que quer continuar a cumprir “os designios do fundador Pe Xavier Madruga”, informando sobre a a vida da igreja mas também sobre a ilha, a região, o país e o mundo, mas “sem saber até quando”.

O Dever já teve 12 diretores, dos quais apenas um não foi do clero.

Já A Crença, que completa dia 19 de dezembro cem anos, tem uma situação financeira mais “confortável”, embora tenha “muitas dificuldades ao nível dos recursos humanos pois a redação não conta com qualquer jornalista ”, disse o seu diretor, o Pe António Cassiano que dirige há 15 anos a publicação centenária, também enquanto pároco da Igreja Matriz de Vila Franca, proprietária do título.

“Sou jornalista `amador´, e em duplo sentido: não tenho a vulgarmente designada `habilitação própria´ para o cargo mas, desde o início até hoje, tenho procurado desempenhá-lo com sentido de missão, por amor à causa a que me obriga o ministério pastoral, e também por amor à terra, esta de Vila Franca do Campo, em que vivo e trabalho há 41 anos”, disse.

Com 80% dos seus leitores residentes no concelho de Vila Franca, o jornal mais do que uma função informativa desperta uma ligação afetiva.

Com uma linha editorial também inspirada nos valores do Evanegelho, A Crença foi fundada por dois sacerdotes- os Padres Ernesto Ferreira e João Bulhões- e, desde que começou a ser impressa tem seguido essa linha, respeitando sempre “o exercício da liberdade de expressão que é suposto haver na Igreja, e não apenas nos seus circuitos internos ou, citando o texto evangélico, nos “aposentos interiores”, mas também “sobre os telhados”, o mesmo que dizer aos microfones das igrejas e nos meios de comunicação social”, referiu o sacerdote lembrando que o facto deste jornal ser da igreja não sugnifica que seja “porta voz” da igreja.

De resto, disse o pe António Cassiano, “a isenção, essa, sim, deve ser um compromisso a cumprir com a seriedade e o rigor possíveis. Em todo o caso, confesso que, muitas vezes, não resisto a selecionar, para o jornal, conteúdos em função da minha maneira de pensar e dos meus gostos pessoais”.

“À semelhança do que acontece com órgãos de imprensa submetidos ao poder económico ou ao poder político, ou a ambos quando convergem, tem um jornal católico de jurar fidelidade à hierarquia católica?” questionou o sacerdote, lembrando que um dos principios basilares é a liberdade de expressão e de opinião e que, em qualquer circunstância, “há sempre algum subjetivismo” na abordagem das notícias.

O Pe António Cassiano não deixou, contudo, de criticar outros orgãos” ditos de inspiração cristã” que, em seu entender “dão mostra de que, afinal, a sua inspiração é outra. E, aqui, “ditos” expressa bem a reserva que nos deve merecer tal qualificação quando aplicada à generalidade dos jornais católicos”.

Dissertando sobre o tema, na comunicação que apresentou durante as Jornadas Diocesanas de Comunicação Social, o sacerdote fez questão de marcar a diferença entre ser um jornal de inspiração cristã e um jornal católico.

“Olho para o jornal que dirijo, e pergunto: “A Crença” é um jornal católico? Sem dúvida. É um jornal de inspiração cristã? Tem bastante. É, declaradamente, um meio de evangelização? Nem por isso. As suas páginas são preenchidas, quase todas, de conteúdos informativos, opinativos e pedagógicos, em princípio com a nobre intenção de dar um contributo, modesto que seja, para a formação humana e cristã dos leitores. Mas, deste estádio, que já é bom, até ser um meio de comunicação verdadeiramente evangelizador, vai ainda uma grande distância”, sublinhou.

De olhos postos no futuro, o atual diretor de A Crença, manifestou o desejo de introduzir “maior qualidade” no jornal, “com uma maior diversificação dos conteúdos e dos colaboradores, para melhor cumprir a sua vocação de serviço público, na Igreja e na comunidade civil”, mas para isso “ há que começar a fazer jornalismo com outra metodologia, a do Evangelho”.

“Mais que simples jornalismo de “investigação”, comum nos órgãos de comunicação social de grande dimensão, há que fazer mais jornalismo de “auscultação”, e não apenas de uns poucos, os mesmos de sempre, mas também da multidão silenciosa e silenciada do mundo dos “pobres”, em sentido lato, ou, como agora se diz, das “periferias”, enfim, dos descendentes diretos daqueles que Jesus Cristo, preferencialmente, evangelizou”, concluiu.

As jornadas de Comunicação foram realizadas em conjunto pelo Serviço Diocesano da Pastoral das Comunicações Sociais da Igreja e pela ouvidoria de Vila Franca do Campo, no âmbito do centenário de A Crença.

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