Pelo padre José Júlio Rocha

Sou feliz por ter nascido no tempo em que se cozia o pão em casa, num forno escuro e fundo, por detrás da abóbada de uma chaminé alta, de mãos postas ao céu, com o fumo a sair, bucólico, a adivinhar um lar quentinho quando a frieza reinava lá fora. Parece que o ar tinha cara de ser mais puro, os trovões ribombavam por detrás das nuvens com um som que me parecia o de serem troncos de árvores a chocar uns contra os outros, o som do vento nas árvores parecia o das ondas do mar da Praia quando se estatelavam, cavernosas, na areia da baía.
No dia em que a minha existência me deu seis anos, o avô Rocha já tinha chegado aos sessenta. Tenho uma impressão nítida desse dia, quando, correndo pelo pátio fora, preparando-me para a proeza de saltar um muro de meio metro que separava a casa paterna da do padrinho, vi meu avô, ao fundo, na canada, com um casaco cinzento puído, bordão às costas, a preparar-se para entrar. Gritei: “Avô: já tenho seis anos!”, e saltei, como se fosse heroísmo, aquele muro de meio metro sem lhe tocar com os pés, coisa que o meu irmão Hernâni já fazia há muito tempo e eu só conseguia saltar, até então, tocando com o pé de apoio no topo do muro. Outra pessoa se aproximava, a tia Augusta.
O avô Rocha era um daqueles sábios que nunca aprendeu a ler e ainda menos a escrever. Aprendeu quase tudo de ouvido, como nas antigas tradições orais, quando se sentava na sua barbearia velha, ao canto da canada do Biscoito, e ouvia atento a leitura do jornal, anos trinta, pela voz do tio Urbino, homem com reconhecidas credenciais na freguesia; ouvia o padre Isaías, amigo de lapas e vinho e alcatra, que desabafava teologia antiga no balcão da casa do avô, junto com o cónego Jeremias e com as figueiras ao fundo do quintal; ouvia o Mateus Leal, memória viva da terra, que lhe falava, nas encruzilhadas da canada, de Napoleão e do Marquês de Pombal, de Afonso Henriques e Vasco da Gama, da guerra mundial, quando as janelas das casas eram cruzadas com uma fita adesiva negra para que os vidros, ao partirem com a ameaça das bombas alemãs, não estilhaçassem para cima de coisas e pessoas. Não falava de Salazar nem dos comunistas. A política não era com ele nem com ninguém da sua idade.
Era a geração do silêncio, que tinha o condão de suportar o insuportável, de rapar tudo o que o chão dava para matar as últimas réstias da fome que sempre ameaçava. José da Rocha era um homem poupado que, ainda com nove anos, começou a podar nas vinhas dos outros, saindo de casa ainda o sol não tinha nascido, a chorar de frio nos pés descalços, uma fatia de pão negro de milho e um chicharro seco para almoço, chegar a casa já noite escura por entre os muros musgosos de basalto a estreitarem o caminho, ir para a cama à luz de petróleo, depois do terço, para acordar ainda de noite e partir descalço para a próxima vinha. E precisar de, nos sábados e domingos de manhã, percorrer as casas dos senhores mais senhores da freguesia a cortar-lhes as barbas senhoris, recebendo em paga, só pelo Natal, uma cambada de milho. Passou assim grande parte dos dias da sua vida.
Habituado a aceitar tudo o que o destino ou os homens quisessem, meu avô ia, impreterivelmente, à missa aos domingos, sentando-se sempre no mesmo lugar, nos bancos de trás, como compete aos homens, vestidos de preto, chapéus fora da cabeça, casacos velhos, descalços, a ouvir o padre Isaías vociferar contra os que não iam à missa, os que criticavam, em conluios secretos, o sagrado regime de Salazar, e meu avô não podia não pensar no João Tibúrcio, no José Professor e no Mateus Leal, espíritos livres que liam livros estrangeiros e eram perigosos para o povo simples, porque semeavam as sementes do mal. Meu avô ficava naquele limbo incómodo, de ter de aceitar as reprimendas do senhor padre, que sabia tudo e falava em nome de Nosso Senhor, e o seu amigo Mateus Leal, uma espécie de génio louco que se apaixonou uma vez por uma mulher para o resto da sua vida e ela, para sempre, no Brasil. Esse Mateus sim, pensava. E pensar é, de alguma forma, ser expulso de algum paraíso.
Dividido entre o padre e o Mateus, meu avô terá, provavelmente, vivido uma vida de silêncio, silêncio que estava escrito nalguma lei invisível, as pessoas sabiam-no mesmo que nunca de tal se falasse, havia assuntos que não se podiam dizer. A tudo a gente se habitua e aquele silêncio de um povo inteiro, a aceitar as cargas da pobreza, da miséria, do atraso cultural, da guerra do Ultramar sem um gemido foi o trabalho perfeito de um regime semelhante ao trabalho de quase todos os regimes ditatoriais. Só as mães, aquelas cuja razão – os filhos – é capaz de resistir a todas as leis da rolha, não se calavam. Ou melhor, os seus pés resistiam, descalços, atrás da senhora de Fátima, a cantar “As nossas almas pedem que vás junto da guerra fazer a paz”. Eram as únicas a que se permitia, sem a sombra da Pide, falar de paz, esse termo impróprio para quem quer defender a honra de um império construído com um passado heroico.
No dia em que celebrei seis anos, a 16 de julho de 1974, depois do 25 de abril, meu avô estava ao portão que dava para o pátio da nossa casa. Encontrou então a tia Augusta, sua prima, que vinha para fora da canada trazendo no rosto a mais espontânea alegria que alguma mulher podia oferecer a alguém. Fora ela que, pouco tempo antes, e durante muitos dias, saia à rua às quatro da manhã, para a boca da canada, meio louca de angústia porque os seus filhos tinham sido capturados pelo inimigo nas roças de Angola e ela ia esperá-los, quase todos os dias, como se viessem. Agora já estavam livres, quase a chegar a casa, e chegaram, com umas G3 às costas e cantando “Avante, camarada, avante…” como quase todos aqueles que se tinham livrado da morte com um tiro ou uma mina debaixo dos pés em nome da honra perdida do império.
Fiz 57 anos ontem. E o espetáculo desabalado da vida tem-me trazido, recorrentemente, à memória, esse velho homem que era meu avô paterno, que viveu cego muito tempo e passou os seus últimos sete anos, já viúvo, na esperança de morrer, porque o seu último e irreprimível desejo era abraçar a mulher, Olívia, por quem terá nutrido sessenta anos de amor.