O fabuloso destino da mulher que chora

Pelo padre José Julio Rocha

A Filomena chora todos os dias. E quando não chora quase sempre tem vontade de chorar. Perto de entrar nos quarenta, Filomena não sabe o que há de fazer à vida. Tem um filho único, oito anos de teimosia e mimice. Casou porque tinha de casar, porque uma mulher que não se casa e fica para titia toda a vida não é mulher que se preze. Casou porque tinha de sair de casa, respirar um ar novo, viver o sonho de uma vida a dois com o segundo namorado que teve e lhe disse duas ou três mentiras amorosas.

Na boda, foi rainha no seu vestido de noiva, todos os pormenores passados pelo pente fino dos seus olhos, desde as flores do bouquet até à estrutura artística dos guardanapos das mesas, passando pelo pedido expresso ao senhor padre para, na missa, ser lida a leitura que diz que as mulheres se devem submeter em tudo aos seus maridos. Chegou a bordar um quadro em ponto cruz com o desenho de uma casa rústica, idílica, num campo verde, ao estilo “um amor e uma cabana”, com, bordadas, as palavras “meu lar, meu mundo”.

Entretanto, o marido, quando era apenas namorado, já tinha mostrado ao que vinha. Amuava com facilidade, mostrava-se ciumento quando ela sorria para os amigos, era agressivo quando ela o contrariava. Ela, claro está, dava o desconto, como sempre se dá, na esperança de que o leito matrimonial e a sóbria mesa da casa nova recompusessem um casal perto de ser perfeito. Até sentia um íntimo prazer nas cenas de ciúme do homem, sinal de que gostava mesmo dela. Já lhe tinham dito, mas ela, obviamente, recusou-se a acreditar, que é no casamento que a lei de Murphy se aplica com mais assertividade.

Agora é infeliz, com 12 anos de casamento. Verdade se diga que o marido nunca lhe bateu. Mas nunca mais lhe disse que a amava, que era linda, que gostava de estar junto dela. Chega a casa e, enquanto vai tirando os sapatos, a camisa, as peúgas, as calças, que vão ficando pelo chão até à casa de banho, exige que a comida esteja pronta em cima da mesa quando o duche acabar. Depois de um jantar silencioso ou cheio de discussões, deita-se no sofá a ver futebol ou qualquer palhaçada que apareça nos canais mais vistos. Às onze vai para a cama, enquanto a Filomena entra pela madrugada dentro a fazer a comida para o dia seguinte, a pôr a roupa suja na máquina enquanto passa, com uma derrotada paciência, a roupa acabada de secar. O mesmo com a loiça, tudo isto depois de mais de uma hora à mesa, com o filho que, como o pai, não a respeita, a tratar dos trabalhos escolares. Entretanto, por volta da uma da manhã, lá está ela na mesa da cozinha, a laborar arduamente no excesso de trabalho de secretária que todos os dias tem de trazer para casa.

Entretanto o Rui, pai de uma colega do filho, que a vem observando desde há tempos, no átrio da escola onde se encontram quase todos os dias, disse-lhe que ela estava cada vez mais linda e que gostava de a ver todos os dias. Ela sentiu um arrepio na espinha mas não deu o braço a torcer. Foi para casa a pensar naquilo e cada vez pensava mais. E todos os dias, ao portão da escola, esperava o sorriso do Rui.

Filomena é uma mulher séria e, por isso, as coisas foram lentas. Primeiro, trocaram os números de telemóvel. A seguir começaram as mensagens dele, sem resposta. Depois vieram as respostas. Filomena já estava apaixonada.

O primeiro encontro acabou num longo beijo e em suspiros. Foi então que a Filomena confessou ao Rui que queria uma coisa mais séria, mais comprometida. O Rui nunca mais apareceu. Nunca mais uma mensagem, nunca mais um sorriso, agora é a mulher do Rui que vem trazer a criança à escola.

Filomena ficou completamente só.

O marido tem uma amante e ela sabe-o. Quase não lhe importa, porque o amor foi-se há muito tempo, quando, em vez de um homem que lhe fosse companheiro, o marido se foi transformando numa criança exigente e violenta, que não perde uma ocasião para a humilhar diante do filho, que, ainda por cima, apoia o pai.

Não fazem amor. Apenas ele usa-a e ela chora, olhos fechados, em silêncio, sem que ele dê por isso.

Há mais de um ano que não fala com o Rui. Vê-o, de vez em quando, por acaso, e o coração salta-lhe à garganta. Não deixa de pensar nele. O amor é um lugar vazio.

Filomena até podia ser um substantivo coletivo.

*Este artigo foi publicado esta sexta feira no Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio.

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