Para trás do sol posto, se lá houver vagas

Por Carmo Rodeia

Volto ao tema do covid.

Este fim de semana, a ministra da Saúde, Marta Temido, e o presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, cada um a seu tempo, admitiu, que todo o sistema de Saúde, incluindo SNS, setor social e privado e estruturas de retaguarda, está próximo do limite.

O presidente disse mesmo que “ou a sociedade percebe (e muda os comportamentos) ou os políticos percebem mesmo que têm que ir mais longe”, admitindo, entre dentes, a necessidade de confinar mais o país e antecipando o seu apoio a novas medidas. Foi à saída do Santa Maria, em Lisboa, um hospital que em março tinha em cuidados intensivos 20 pessoas e agora estão lá 647, onde o número de internados passou de 89 para os 4800 e que, neste momento, tem apenas 12 camas disponíveis para covid e uma em cuidados intensivos, como noticiava hoje o Expresso.

O que Marcelo viu em Santa Maria, estamos nós a ver em todos os hospitais por esse país fora, regiões autónomas inclusive. Já aqui critiquei a falta de planeamento e de capacidade de antecipação dos políticos. Não vale a pena culpabilizar o Natal, porque todos com mais ou menos convicção o quisemos celebrar, e os decisores cederam. O que critico é o nosso comportamento e sobretudo a nossa `despaciência´ para cumprir regras e sermos muito criativos em transformar as exceções nessas mesmas regras. Somos pródigos nessa matéria procurando sempre a nesga de fuga para contornar a norma, na única aberta que ela possa antecipar. Mas desta vez, julgo que não temos escapatória. O número de casos, a sua gravidade e, sobretudo, as variantes de um bicho horrendo que não cede constituem ameaças sérias à nossa vida quotidiana, à qual temos de prestar mais atenção sob pena de sermos obrigados a prolongar este inferno. Ninguém aguenta mais um ano nisto…

Em março, naquela bênção Urbi et Orbi, a partir da Praça de São Pedro, que não deixou ninguém indiferente, o Papa dizia-nos que ninguém se salvará sozinho e que estamos todos no mesmo barco. Mas para que o barco não vá ao fundo, e siga na direção certa, temos de remar todos de forma sincronizada.

Dificilmente será o caso se quando nos pedem para ficarmos em casa arranjamos todos os pretextos para sair; se quando nos dizem que não podemos ir a restaurantes e a cafés, não entramos mas ficamos ao postigo; se quando nos pedem para evitar aglomerações, vamos todos passear o cão à praia; se de repente, num golpe de mágica, todos viramos desportistas ou fazemos do supermercado aquilo que o anuncio publicitário à poupança de energia caricaturava no frigorifico: agora abro a porta e vou comprar leite, depois abro outra vez e vou comprar o pão e, ainda, outra vez, comprar um quilo de maçãs…

No primeiro confinamento estranhou-se mas respeitou-se porque se tinha medo. Sabia-se pouco do vírus, os medicamentos não o faziam ceder e não havia qualquer vacina. O medo vergou a arrogância humana e ditou o bom comportamento.

Agora que a ciência colocou no mercado várias vacinas achamo-nos donos do mundo outra vez. Já podemos tudo esquecendo-nos de que o que era problema dos outros em março, em abril e em maio, bate-nos à porta da forma mais cruel. Somos o primeiro país da União Europeia com mais casos diários novos de covid por milhão de habitantes.

O sistema está em colapso, o número de mortes não para de subir e nós brincamos com o confinamento. Até ao dia em que precisarmos de uma cama no hospital e nos mandem para trás do sol posto, se lá houver vaga. Sobretudo se o mal não for o covid.

O medo e a arrogância não rimam com esperança. Mas ambos podem hipotecá-la.

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