Seremos capazes de concretizar essa ideia magistral do Concílio “Igreja Povo de Deus”?

Foto: Igreja Açores/GM

Por Carmo Rodeia

A Igreja vive, por estes dias, um desafio maior do que cada um de nós mas para o qual estamos todos convocados. Somos chamados a pronunciar-nos novamente sobre a síntese da XVI Assembleia do Sínodo, que decorreu em Roma em outubro passado.

Participei na fase continental europeia em Praga, em fevereiro de 2023, com mais dois portugueses. Presenciei e vivi as tensões dentro da Igreja, que de forma simplista se traduzem no espaço público, para a maior parte da opinião pública, como guerras entre conservadores, mais tradicionalistas e progressistas, mais abertos aos tempos. Não gosto de nenhuma das expressões porque acho que além de redutoras são maniqueístas, como se o mundo e a vida só tivessem duas cores e todos sabemos que não é assim.

A sinodalidade não é algo abstracto embora por vezes tenhamos sido pouco concretos e, talvez por isso, tenhamos tido pouco sucesso no entusiasmo e na adesão das pessoas a esta discussão, entendida como um emaranhado de conceitos filosóficos e teológicos, pouco acessíveis ao povo de Deus e que não nos diz respeito a nós que estamos nas nossas paróquias, nas nossas ouvidorias como leitores, acólitos, ministros extraordinários da comunhão, catequistas, vicentinos, escuteiros e por aí fora, tantos os ministérios que desempenhamos nas nossas comunidades.

Por outro lado, os ecos que vêm plasmados na comunicação social são sempre os mesmos: sínodo da Igreja discute celibato obrigatório dos padres ou a ordenação das mulheres ou o acesso dos recasados à comunhão ou as bênçãos para casais homossexuais…

Para a maioria de nós, a grande tentação é o desânimo, a falta de entusiasmo, o cansaço, aquela voz interior que deve ser combatida “isso não vai dar em nada, é só perda de tempo”.

Meio a brincar meio a sério, costumo dizer assim: a vida é um dom e Deus quer que nós o ponhamos a render, como na parábola dos talentos. Vamos discernindo a forma como queremos colocar esse dom a render e vamos descobrindo o nosso carisma e transformando-o em ministério e depois em serviço. O meu nunca foi o da vida consagrada. Quis casar, formar família, ter filhos, ser jornalista. Sou menos amada por Deus? Julgo que não. Sou menos considerada ou qualificada por Ele para O servir e para servir a Sua Palavra? Julgo que não, a não ser quando Lhe sou infiel. A forma como sirvo a Igreja é menos relevante do que a forma como os ministros ordenados servem? Atrever-me-ia a dizer que não, mesmo correndo o risco de estar a professar uma heresia. Diria apenas que é diferente, tal como um pai e uma mãe são diferentes entre si, numa família e na relação com os filhos.

A Igreja é um “mistério de comunhão missionária”, como nos disse João Paulo II na encíclica Novo Millenio Ineunte. Mas, esta comunhão não é somente afetiva ou etérea, implica necessariamente uma participação real: não só a hierarquia, mas todo o Povo de Deus em modos diversos e em diferentes níveis pode fazer ouvir a própria voz e sentir-se parte do caminho da Igreja.

Em “A tarde do Cristianismo, o tempo da transformação”, Tomás Halík refere que a crise atual do Cristianismo diz respeito, “em grande parte, à ‘forma’ eclesial, ao modo de proceder comum, ao estilo eclesial”, ou seja, o que herdámos do último milénio deixou de funcionar e o Concílio Vaticano II disse-o e demonstrou-o. E, o facto de ainda não termos conseguido concretizar o que o Concílio nos sugeriu, fez com que a situação se agravasse.

No livro, o teólogo checo defende que “O futuro das igrejas depende em grande parte de se saber, quando e em que medida elas entenderão a importância desta mudança [de época] e de como poderão responder a este sinal dos tempos” que não compreende nem pode, por isso, valorizar a profecia do Cristianismo porque nós temos sido razoavelmente incompetentes em mostrá-la.

De facto, como tem insistido o Papa Francisco, “vivemos uma mudança de época e não, simplesmente, uma época de mudança” e essa perspectiva, tem de nos fazer refletir e questionar sobre como expressamos esta profecia de modo a torna-la vivível e visível no quotidiano das nossas sociedades.

Como é que vivemos, identificamos e comunicamos a experiência da fé cristã?

Há de facto um problema de identidade que vai para além da forma como eu individualmente vivo a minha vida seguindo a matriz cristã em que me inscrevo.

Halík propõe quatro aspectos de um novo caminho: a Igreja como povo de Deus na história; a Igreja como escola de vida e de sabedoria; a Igreja como hospital de campanha; e a Igreja como lugar de encontro e de diálogo. Naturalmente, que nada disto tem sentido se a misericórdia não for o fio condutor desta história.

Temos sede como Ele tinha, quando pediu à Samaratina para lhe dar de beber ?

Naquele pedido, inverosímil para a época, veio uma palavra nova feita de abraço a dizer-lhe somos diferentes mas podemos criar na nossa diferença um espaço novo. Estranha inquietação deve ela ter experimentado, como que a pensar que aquele momento não era da sua vida. Foi assim uma espécie de “shot de esperança” o que terá experimentado…

Quantos de nós não temos vontade de caminhar ou caminhamos cansados, por vezes até dizendo, esta não era a vida que queríamos nem desejávamos e a pergunta que se impõe seria: `então porque não fazes diferente?´.

A pergunta que deveríamos fazer a nós próprios é: `porque não faço diferente? Porque não sou capaz? Porque tenho medo? Porque não confio?´.

É, temos de fazer diferente do que temos feito até agora. A conversão só acontecerá se não ficarmos indiferentes; se não nos dermos por saciados; se não deixarmos de colocar à porta de casa a tabuleta: `não quero ser incomodado por ninguém. Eu cá vivo a minha fé e com sorte até escolho um Deus à minha medida´.

Dois dos meus três filhos são corredores. Andam pelo país e pelo mundo fora a correr 42 quilómetros. E eu pergunto-lhes qual é o gozo? E eles respondem: Mãe, superarmo-nos. Vencermos as nossas fragilidades e os nossos medos. Sermos capazes de sermos melhores. Eles correm em equipa e nas maratonas as equipas recebem pontos consoante a performance individual e coletiva. E depois chegam ao fim e o que é que acontece, para além de cortarem a meta, pergunto eu…Menos uns segundos do que na prova anterior e surge a conquista individual; mais um da equipa que conseguiu reduzir o tempo e contribui para a melhor performance  do grupo. E partem para nova maratona.

Gosto desta ideia como se cada meta fosse um ponto da partida. Gosto do movimento e gosto da consideração uns pelos outros!

Julgo que a sinodalidade é isto: todos nos considerarmos e todos contarmos.

Estamos numa etapa do processo na nossa igreja diocesana a tentar perceber como cada cristão se sente membro da Igreja, qual a missão que julga ter dentro da Igreja e como pode ajudar a Igreja a crescer. Está a ser muito desafiante…

No espaço de menos de um mês recebemos perto de 400 respostas on-line. De todas as respostas há uma questão transversal: a necessidade da escuta. A escuta do sacerdote, para além da confissão; a escuta das opiniões e das sugestões… A escuta!

Então há sede! Ninguém está saciado. Olhando para o pano vemos que tem rugas; vemos que não é preciso mudar tudo. Não precisamos mudar o essencial sequer, mas temos de mudar alguma coisa e, não, nem tudo pode ficar na mesma.

A Igreja tem de ser relevante; a Igreja tem a obrigação de ser a presença de Deus na Polis. Por isso, não pode auto excluir-se por teimosia, por auto-referencialidade e por achar que está bem e o mundo é que está mal.

«Arrependei-vos e acreditai no evangelho»: esta é a primeira afirmação de Jesus no evangelho de Marcos, um apelo dirigido hoje a cada um(a) de nós. Foi, precisamente, com este apelo que iniciámos quarta-feira de cinzas o tempo da Quaresma. Estruturamos a nossa vida em modos de pensar, em razões que nos orientam. O apelo de Jesus, hoje, é, precisamente, mudar o nosso modo de pensar, pensarmos com outros e novos critérios, outras motivações, outras lógicas.

Estamos disponíveis para elas? Esta é a pergunta que cada um de nós tem de fazer a si mesmo abrindo o coração à escuta do espírito. Se formos capazes disse já estamos em sínodo.

(Este artigo foi publicado também no jornal Correio dos Açores)

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