Por Monsenhor António Saldanha e Albuquerque
Testemunha de várias aparições de Nossa Senhora, mais das que celebramos anualmente no santuário de Fátima, entrou para lá das fronteiras da vida terrena ao contemplar o horror indescritível da eternidade longe de Deus, recebeu espiritualmente a comunhão de um anjo, previu com a exactidão de um instrumento de alta precisão tecnológica uma raríssima conjugação de fenómenos físicos que ficariam conhecidos como o “milagre do sol”.
Porta-voz de uma mensagem que lhe foi comunicada numa idade joveníssima e num contexto social e geográfico rural escassamente alfabetizado e árido, falou do fim de um conflito que então era ainda incerto nos seus resultados, alertou para os erros de todas as ideologias desumanas ainda que encharcadas de idealismos capazes de comover milhões de pessoas, suplicou a conversão dos pecadores. Resumiu o evangelho de novo com o apelo a um regresso a Cristo única estrada digna de ser percorrida em pleno e a que sejamos sensíveis aos dramas dos outros através da oração pela conversão porque o pecado é a raiz invisível e venenosa do sofrimento humano.
A 26 de Junho foi assinado o decreto das suas virtudes humanas e espirituais em grau heróico e passou a ter o título de Venerável, abrindo-se-lhe na Igreja por assentimento do Papa Francisco, as portas da sua previsível beatificação e canonização.
Não foram contudo as aparições nem as experiências místicas que levaram a que esta grande mulher tivesse uma Causa de beatificação. Encerrada em vários conventos, foram os seus degraus de santificação a confiança absoluta na Providência de Deus, a oração, a fidelidade ao carisma da sua Ordem religiosa de modo exemplar. Inteligente e de caráter forte, depositária de revelações carregadas de esperança para a humanidade, foram as estações mais difíceis da sua “via crucis” a luta pela humildade e pelo sentido de obediência em contextos fechados onde frequentemente a incompreensão e sentimentos estranhos ao evangelho podem crescer como plantas nocivas.
A irmã Lúcia, vai ser um dia beatificada não tanto porque Nossa Senhora lhe falou, mas porque desejando corresponder a tal privilégio, trabalhou o seu carácter e educou a sua própria humanidade para a predispor no silêncio para o serviço do Santo Padre e da Igreja, das suas irmãs de profissão religiosa, dos milhares de homens e mulheres que famintos de orientação e de caridade se encontraram com ela através da sua imponente correspondência epistolar e indiretamente, nas múltiplas iniciativas que inspirou e promoveu no socorro aos mais pobres.
Inimitável a sua experiência vivida quando levava a pastar os rebanhos de família e dificilmente consensual o que resultou das visões que teve, a Irmã Lúcia vê reconhecidas pelo Papa Francisco, as suas qualidades humanas e religiosas a tempo das jornadas mundiais da juventude para que possa servir de modelo inspirador às novas gerações enquanto proposta de vida coerente com a mensagem do Evangelho.
A sua vida e as opções que assumiu e que a santificaram são estímulo para quem, afogado em más notícias pode ser tentado a esquecer que cada ser humano, mesmo carregado de contradições, será sempre o maior bem e o verdadeiro milagre de todo o criado.
Um bem inestimável em sim mesmo, cujo ápice das suas capacidades e o melhor resultado da sua generosidade é o encontro com Deus, como recorda o documento conciliar Gaudium et Spes: «o aspeto mais sublime da dignidade humana consiste na sua vocação à comunhão com Deus».
Esta foi a meta de toda a longa vida da Venerável Ir. Lúcia e a proposta que deixa com os santos e beatos patronos das Jornadas aos jovens que se encontrarão em Lisboa com o Papa Francisco.
* Monsenhor António Saldanha e Albuquerque é oficial do Dicastério para as Causas dos Santos e colaborador do Sítio Igreja Açores