O deus das pequenas coisas

Por Carmo Rodeia

Peço de empréstimo o título à escritora indiana Arundhati Roy, autora do livro “O deus das pequenas coisas”. O livro que foi premiado, julgo que em 1997 ou 1998, ano da sua primeira edição, conta a história de três gerações de uma família do sul da India, dispersa por todo o mundo e que um dia se reencontra na terra natal. As histórias cruzadas são imensas e envolvem os gémeos Estha e Rahel, separados da sua mãe Ammu, divorciada e apaixonada por um rival da família, ou da avó Mammachi que se despedaça em meiguices, do tio Chacko que anseia pelo regresso da ex-mulher inglesa, de nome Margaret, e da filha de ambos, Sophie Mol, ou ainda a da tia avó, mais nova, apaixonada por um padre. São pequenas histórias, de amores proibidos e socialmente impossíveis, que se cruzam sobre o quotidiano de um país e de uma cultura amarrada por regras e tradições não escritas, que violentam a dignidade humana e onde apenas se dizem as pequenas coisas e as grandes ficam por dizer. Porque aos intocáveis, ou aos que não tiveram a sorte de nascer nas castas mais altas, só lhes é permitido dizer pequenas coisas. Pequenas coisas que são descritas até ao mais ínfimo pormenor, como que para prolongar ao máximo a durabilidade daqueles momentos preciosos, porque proibidos, obrigando as personagens a agarrarem-se às pequenas coisas, que as ligam às grandes coisas, como o amor, a esperança ou uma alegria infinita. Valores e sentimentos apenas ao alcance de alguns.

Na vida da abundância, em que temos tudo à mão de semear, valorizamos pouco as pequenas coisas.

É como aquela história do homem, piedoso, que na sua oração pede a Deus para o visitar em sua casa. E, certo de que Ele o visitará, prepara a melhor mesa possível, com as melhores iguarias e a melhor loiça, com uma casa a cheirar ao melhor perfume de incenso. E enquanto espera por Deus, no dia combinado, é interpelado primeiro por um miúdo que lhe tenta tirar uma maçã e que ele escorraça; depois por um mendigo a quem pediu para voltar noutro dia porque naquele não tinha tempo já que estava à espera de um convidado ilustre e, finalmente, a meio da tarde, chegou um hóspede a quem negou o acolhimento porque estava à espera de Deus. E Deus, que era o único esperado, e desejado, não chegou. À noite quando se recolheu, do alto do seu desânimo, zangado, protestou com Deus e disse-lhe: tanto que esperei e não vieste. E Deus respondeu: três vezes tentei entrar e tu impediste-me.

Esperamos Deus sempre no máximo, quando ele se revela nas pequenas coisas. Mas nós, pessoas de pouca fé, não vemos nem ouvimos porque o ouvido do coração é duro. Atendemos mais facilmente os indesejáveis sofrimentos , o desconforto da calamidade em vez de darmos espaço e voz à confiança.

À semelhança das personagens de Arundhati Roy também nós vivemos aprisionados por pequenas coisas. Deixamos-nos devorar por elas. E, chegamos àquele momento em que nos achamos incapazes até de amar.

Tenho de voltar a Santo Agostinho e ao seu sábio conselho: ama e faz o que quiseres.

Scroll to Top