A tentação do “impeachment” dentro da igreja

Por Carmo Rodeia

O mundo anda meio virado do avesso e todos os dias somos bombardeados com declarações tóxicas vindas dos sítios mais distintos desde os dirigentes políticos à igreja.

Nas últimas duas semanas cartazes anónimos com críticas ao papa Francisco estiveram durante algumas horas colados em várias ruas de Roma, ostentando uma fotografia do pontífice e um texto, cuja origem está a ser já investigada pela polícia.

Os cartazes foram colocados em suportes habituais de publicidade, espalhados pela capital italiana e não estavam assinados nem tinham qualquer tipo de identificação dos autores.

Abaixo da imagem do papa, com uma cara séria, o texto dizia “Francisco, interditaste congregações, afastaste sacerdotes, decapitaste a Ordem de Malta e os franciscanos da Imaculada, ignoraste cardeais… mas onde está a tua misericórdia?”.

O diretor da “Civiltà Cattolica”, a revista da Companhia de Jesus, António Spadaro, comentou na rede social Twitter que os cartazes são “uma medalha” pelo empenho do papa “contra os muros e o racismo”.

“Um sinal de que está a trabalhar bem e que está incomodando muito”, acrescentou Spadaro, jesuíta como o papa Francisco.

Os cartazes apareceram no mesmo dia em que o papa exerceu a sua autoridade sobre a Ordem de Malta, nomeando um importante arcebispo do Vaticano, Angelo Becciu, como seu representante especial junto da antiga ordem aristocrática, a quem deu “todos os poderes necessários” para ajudar a estabelecer as bases de uma nova constituição para a Ordem, conduzir a renovação espiritual dos seus cavaleiros e preparar a eleição de um novo grão-mestre, esperado dentro de três meses.

O que é que fez de mal?

A intervenção do papa levou a críticas dos sectores mais conservadores. Como sempre acontece quando Francisco corta a direito e procura centrar-se no essencial.

Se olharmos para a história dos pontificados do século XX verificamos que sempre aconteceu assim: com João XXIII quando convocou o Concílio; com Paulo VI quando publicou a encíclica Humanae Vitae, com João Paulo II por causa da forma como exercia o governo dentro da igreja…todos eles conheceram zonas de contestação no interior da Igreja. O que acontece agora é que estávamos habituados a que o Papa fosse contestado por uma ala mais à esquerda da própria Igreja e se calhar menos organizada e menos visível. Hoje, vemos o Papa Francisco ser contestado por uma ala conservadora e por alguns nomes importantes, mesmo cardeais, que às vezes parecem disponíveis para aplicar uma espécie de impeachment do Papa, ainda que simbólico.

O desprendimento em relação àquilo que é a forma exterior- por exemplo não viver no palácio apostólico mas numa comunidade com outros padres- ou o modelo de igreja que defende, mais despojada, com características mais sinodais, e essa disponibilidade para acolher os últimos, incomodam, sobretudo porque assinalam o princípio da reforma, a que ele dá continuidade com o  recentramento evangélico da mensagem e da prática cristã.

Francisco incita-nos a todos a termos uma renovada capacidade e vontade de acolher. A sermos uma igreja comprometida com a hospitalidade, à imagem e semelhança do modelo de Jesus de Nazaré, que era amigo, comia e bebia com publicanos e pecadores. E era nesse acolhimento que se davam grandes transformações.

A quantidade de pessoas que estão tocadas pelo exemplo do Papa e referem o seu discurso como uma palavra de hospitalidade que permitiu o regresso ao “redil”, o momento do repensamento e da transformação, é enorme.

Porque é que é tão difícil compreender isto? Porque se calhar é isto que põe em causa tudo o resto, que se adquiriu nesta vida.

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