A vida são dois dias

Por Carmo Rodeia

Há uns dias fui surpreendida pela morte de uma amiga chegada. Uma doença daquelas que mordem pela calada, que não pedem licença para entrar; não se manifestam e quando damos por elas já é tarde demais.  Não deixa descendência direta porque nunca sentiu o apelo da maternidade, dizia. Sou mulher e isso basta-me. Não era uma questão de género nem de resistência. Era mesmo feitio. Nem chegou a casar, embora tivesse vivido sempre com o seu primeiro e único amor, que se foi há quatro anos.

“Devota” de literatura e, em particular de poesia, dizia sempre de uma forma muito Nerudiana que vivia cada dia como se fosse cada dia. Nem o último nem o primeiro; simplesmente o único. Por isso, quando há dois meses lhe disseram que não havia hipóteses continuou a viver como sempre viveu.

Era uma mulher  de fé, que enchia uma casa: viva, alegre, assertiva, muitas vezes sem filtros, mas sempre coerente e verdadeira. Muitas vezes falámos de Deus e pedimos juntas a nossa conversão. Ela dizia-me frequentemente: somos pecadoras,  graças a Deus, mas um dia, quando chegar a hora, havemos de nos redimir.

Apesar do choque da notícia e da tristeza que me consome a alma, sei que está em paz. Talvez a conversão que ambas tanto procurávamos, tenha sido por ela encontrada agora na plenitude da casa do Pai. Sem julgamentos e sem ressentimentos. A mim, a nós que privámos tanto com ela, deixa-nos a certeza de que um dia nos reencontraremos e juntas viveremos convertidas.

Não fizemos a nossa missão num lugar em ruínas, não chegámos a partir para o Médio Oriente para fazer aquela viagem que  ambas sonhávamos- atravessar o Médio Oriente de carro-, não fomos à Terra Santa no encalce de Maria Madalena, mas havemos de nos encontrar no Céu, onde voltaremos a gargalhar com os disparates habituais, gozando com a nossa “beatice” como ela costumava dizer.

Às vezes, as circunstâncias da vida podem fazer-nos esquecer a nossa origem, de onde vimos e para onde caminhamos. Não vou esconder que a morte dela me deixou sem chão. Não estávamos juntas há mais de dois anos, por causa da pandemia, deste maldito vírus que nos tem afastado uns dos outros, com a promessa triste e estúpida de que temos de aguentar porque um dia há de ficar tudo bem. Não, não vai ficar tudo bem. E não é por causa do vírus que mais dia menos dia, mais investigação menos investigação, há ser posto na ordem, como todos os outros foram postos no seu devido tempo. Porque a ciência pode muito, porque o homem da ciência pode quase tudo. Mas não pode o essencial porque acha-se muito senhor de si. Enquanto formos assim tão fortes e considerarmos que não precisamos de Deus, pois sozinhos resolvemos, havemos de continuar a morrer, por causa da falta de saúde mas também por causa da falta de Deus. Morrer é só não ser visto, dizia Pessoa. Quantos mortos vivos há neste mundo e não é por causa do vírus. É por causa do homem.

Estou magoada e triste, mas a vida sem feridas não existe. O importante é pegar nelas e fazer caminho. Tal como as feridas de Jesus, já ressuscitado: estas feridas já não são sinal de sofrimento e dor, mas de entrega e de amor.

Até sempre,  minha Amiga Lúcia. Vamos ter de pegar nas nossas feridas e palmilhar caminho. Como fizemos noutras alturas, entregues às nossas desilusões e conquistas.  Por trilhos e retiros de silêncio, que nos empurravam para Deus, ajudando-nos a regenerar e a profundar a nossa fé, limpando o nosso olhar ou a pacificar o nosso coração. Tu aí e eu aqui, como sempre: estimando-nos, respeitando-nos e pecando, graças a Deus. Até ao Céu…

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