Angra: Ouvir o Natal outra vez

Pelo Padre José Júlio Rocha

Que música ficou em mim? Estou sentado refasteladamente numa cadeira, saco vermelho enorme entre os joelhos. Desta vez, sou o Pai Natal da família. Afogueado de calor naquela noite fria, com as barbas brancas a picarem as faces, vou ouvindo aquele “I Wish You a Merry Christmas” sem sabor nem cheiro, enquanto os sobrinhos descobrem quem é o Pai Natal, porque o “oh-oh-oh” saiu demasiado meu. Vá lá que eles já não acreditam no Pai Natal, um dos mitos urbanos que mais angustiam os pais desta geração. Ao fundo, dois gordos perus presidem a uma mesa farta, farta de tudo. Ao meu lado ergue-se, branca e estilizada, a árvore de Natal, já com as luzes embutidas, brancas de neve como a árvore que cobre uma montanha de cubos vermelhos com laço dourado, a fingir que são prendas. Prendas, essas, são às dezenas grandes, muitas para cada criança.

Que música ficou em mim? O gato é enxotado porque já se aproximava perigosamente da árvore, das suas bolas e das suas fitas, tudo a condizer artificialmente com tudo. O Natal é ingratamente igual em todo o mundo cristãmente rico. É o Natal americano, que invadiu o mercado e as gentes.

«Envolveu-O em panos e deitou-O numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na hospedaria.» (Lc 2, 7). O Natal é o lugar onde não havia lugar para Jesus.

Olhando os meus irmãos, regresso a mais de quarenta anos atrás, ao nosso Natal, porque o Natal só é nosso quando fomos crianças. A primeira azáfama era a chegada da criptoméria, o nosso pinheirinho, com um cheiro tão único que ficava pela casa durante aquele mês inteiro. Do sótão desciam os caixotes com as figuras do presépio, barro tosco e pintado, as fitas, as luzes e as bolas, muitas delas vindas em sacos americanos, as prendas dos nossos emigrantes. Nos Açores, o Natal sempre teve o cheiro da saudade dos nossos emigrantes. No dia seguinte, pela manhã, frio de cortar, penetrávamos nos matos e nas clareiras, à procura de leivas, pedras e húmus para compor, religiosamente, a mais bela obra: o nosso presépio. As casas de cartão, que vinham para ser recortadas e coladas, representando as habitações populares portuguesas, ponteavam o cenário, onde não faltava a igreja, porque não se pode imaginar um Natal sem uma igreja. Já lá ponteavam os pratos de trigo a espigar em água. Ao cheiro da árvore, ao piscar das luzes e diante do presépio, rezávamos o terço do Menino Jesus e, pelo menos nessa altura, ninguém refilava. A consoada era bacalhau ou galinha, temperados com a missa do galo e a cama, naquela noite mais longa da vida. Púnhamos o sapatinho na chaminé, porque a primeira vez que vimos um Pai Natal já foi tarde, um Pai Natal insuflável que veio dos primos da América. Só lá para as duas ou três da manhã pregávamos o olho, tal era a excitação da espera, de ouvir os passos do Menino perto dos nossos sapatinhos. Adorava cantar a “Noite Feliz”.

Que música ficou em mim? Olho para a minha septuagenária mãe, sentada na cabeceira da mesa, matriarca doce e distraída. Recordo as recordações dela, do seu Natal de há quase setenta anos atrás. Numa faia-do-norte eram pendurados postais de Natal dos anos quarenta e cinquenta, todos eles escritos com as saudades dos nossos, estampados com igrejinhas cobertas de neve ou grutas de Belém em noite estrelada. Laranjas e tangerinas inundavam a árvore e o presépio. Era esse o cheiro a Natal em tempos de minha mãe. Hoje o Natal não tem cheiro. Ou tem tantos que o nosso nariz nem alcança. Não havia prendas para ninguém e, à consoada, a canja de galinha marcava a diferença dos outros dias. À porta, noitinha dentro, batiam os “reizes”, que vinham cantar e degustar os figos passados e a aguardente que recebiam as visitas. Rezava-se. Cantava-se “Entrai, pastores, entrai por esse portal sagrado…”

Que música ficou em mim? Tenho esses três Natais dentro de mim. Apareceram as prendas, partiram as laranjas; apareceu o Pai Natal, partiu o Menino Jesus. O Natal é o lugar onde não há lugar para Jesus.

“É Natal. Nasceu o Deus Menino. O mundo que era grande tornou-se pequenino.” Ainda não sei que música ficou em mim.

*Este artigo foi publicado pela Agência Ecclesia, este domingo.

 

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