Beijar-te-ei, doze vezes, os pés

Foto: Igreja Açores

Pelo Padre José Júlio Rocha

Não me venham com Ursula von der Leyen, Christine Lagarde ou Kamala Harris. Esqueçam a rainha Isabel II ou Angela Merkel, Nadine Gordimer ou Margaret Thatcher. Metam no saco Marilyn Monroe, Maryl Streep ou Angelina Jolie.

A mulher mais importante do mundo chama-se Maria da Conceição Costa Mendes. E toda a gente sabe quem é.

É especializada em doenças, que mulher doente é mulher para sempre, desde um pulmão cortado pela metade em 1980, alguns dias internada por enfarte, um mês no Santa Maria, a tratar um problema misterioso nos pulmões, ainda bebé previram a sua morte aos oito anos e ela já leva oitenta e, esperamos nós, nem oito nem oitenta, mas noventa ou cem, com a saúde devida.

Estávamos em novembro de 1999, e os meses de outubro e novembro têm a marca do crepúsculo, dos dias a ficarem pequenos, aquele incómodo escurecer a partir de meia tarde, esses outonos prolongados e sem sol, tristes e abatidos, os dias a afunilarem, as noites, cedo demais, a espalharem farrapos de escuridão. Há quem goste do outono.

Nesse outono eu decidira viver sozinho pela primeira vez na minha vida. Até aos treze anos dormi com meus irmãos, na casa dos pais. Fui depois viver para o Seminário Menor, em Ponta Delgada, depois em Angra e, em 1992, já padre, vivi em Roma, no Colégio Português. Regressei – professor – para o Seminário de Angra. Sempre a viver em comunidade.

No dia em que resolvi ir viver sozinho – no caso, para o passal de Santa Luzia em Angra – alguém entrou em pânico: minha mãe. Os meus irmãos já estavam casados, já tinham “dona”. Restava eu, desarrumado, distraído, sem saber fazer comida e com a cabeça na lua. Na cabeça dela não havia maneira de eu sobreviver sozinho, que um filho, mesmo com 31 anos, nunca deixa de ser a criança que a mãe sempre quer levar ao colo. Decidiu vir duas vezes por semana a Angra, a minha casa, para a arrumar, fazer comida, tratar da roupa e, sobretudo, especialidade de tudo o que se chama mãe, dar conselhos a torto e a direito.

Nesse dia de novembro de 1999 eu ia entrar num importante e difícil retiro, como assistente espiritual. Um retiro dos Cursilhos de Cristandade, em que um homem tem que se preparar com muita oração, estudo e dedicação. Ia entrar por volta das cinco da tarde, mas às nove da manhã já estava na Fonte do Bastardo, a buscar a mãe para me tratar da casa. Os 17 quilómetros que separam a casa da minha mãe do passal de Santa Luzia foram um sacrifício. Eu calado, a conduzir pacificamente. Maria da Conceição não se calava. Ele era o meu desarrumo, que não tinha necessidade nenhuma de andar com sapatos velhos, roupas que não condiziam, ai aquelas calças, já quase rotas! Que eu comesse a horas, muita fruta, poucas gorduras, que a casa, ai a casa! Com livros por todo o lado, o saco do lixo já a transbordar, a mesa da cozinha cheia de catecismos, o gato que tinha feito porcaria, na outra semana, mesmo no hall de entrada. E eu calado, a tentar não sair do meu recolhimento interior, mas já a ficar pelas franjas. A certa altura dei por mim a pensar que já não a podia ouvir.

“Júlio, hás de dar a chave da tua casa à mãe, para a mãe poder entrar sem te pedir sempre a chave.” Foi a gota de água. Travei o carro com alguma assertividade. Vi, de soslaio, a cabeça dela inclinar-se para a frente, depois voltar à posição anterior e virar-se para mim. Sempre a olhar para o caminho, vociferei: “A mãe já pediu alguma vez uma chave de casa aos meus irmãos?” “Não…”. “Então não me peças a mim e acabou-se!” Fui duro. Indelicado. Acelerei, já arrependido, à espera do raspanete ou, no mínimo, daquela carinha que ela costuma fazer, mimosa e triste, quando a ofendem. Nada disso. Continuava com os olhos postos em mim. E disse, sem ofensas nem repreensões, apenas com toda a sinceridade do seu coração: “Ah Júlio, desculpa”. Foi como se levasse uma estalada na boca. Daquelas que fazem sangue. Minha mãe tinha acabado de pôr em prática, sem o saber, a máxima de Jesus que nos manda dar a outra face. Perdi. Perdi todas as razões, aprendi como se deve aprender, nunca mais esqueci esse gesto simples e poderoso de minha mãe. As grandes lições são coisas tão pequenas…

Agora Maria da Conceição já chegou à casa dos oitenta e está cada vez mais pequenina. Tem o seu brinquedo, um “tablet” que lhe comprámos, e passa o dia com ele, a falar com a vizinha ou com a prima da América que já não vê há mais de sessenta anos. Vive sozinha, cuida da sua casa, passeia e tem duas gatas a partilhar o mesmo espaço dela, mais uns quatro ou cinco gatos pedinchões, selvagens esquivos à volta da casa e da comida. Sabe fazer poesia, chora ao ler Tolentino, os poemas de Tolentino que uma velhota de oitenta anos e a terceira classe não percebe mas adivinha a emoção estética.

E é a mulher a que devo tudo, a vida, a vocação, a criatividade, o temperamento, a distração, todo o amor.

À data da publicação desta crónica Jesus é crucificado, Sexta-feira da Paixão. “Eis a tua mãe”, diz Jesus a João. E ao proclamar estas palavras, no Evangelho do dia, olharei para ela, para a sua cabecinha cinzenta e sempre a tremelicar, os cabelos eternamente selvagens, a sorrir a sorrir.

Este ano, na missa do Lava-pés, escolhi só mulheres como apóstolas. Sim. Não faria outro sentido. São elas a força telúrica da Igreja e nós teimamos em não dar por isso. Uma das minhas apóstolas terá oitenta anos, cabecinha a tremer e terá, como nome, Maria da Conceição Costa Mendes. Lavar-lhe-ei os pés como quem pega uma pedra preciosa, beijá-los-ei doze vezes, com a certeza de que nada pagará o amor de uma mãe.

Jesus, na quarta Estação da Via-sacra, encontra Sua Mãe. Na décima terceira, está nos Seus braços. Em todas as religiões o paraíso tem sempre algo a ver com o ventre ou os braços de uma mãe.

*Este texto foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio.

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