“Curar se é possível, cuidar sempre”

Foto: Igreja Açores/GM

Por Carmo Rodeia

O mês de fevereiro é marcado pelo Dia Mundial do Doente, que se assinala no dia 11, dia de Nossa Senhora de Lourdes. É de resto, o tema do Vídeo do Papa feito pela Rede Mundial de Oração.

O Papa cita São João Paulo II que afirmava a propósito dos doentes terminais: “curar se é possível, cuidar sempre”. E, lembra que há duas palavras que facilmente podem ser confundidas: incurável e in-cuidável, que não são a mesma coisa, lembra Francisco sublinhando  o direito que os doentes têm ao acompanhamento médico, ao acompanhamento psicológico, ao acompanhamento espiritual, ao acompanhamento humano.

E prossegue: “Às vezes não podem falar, às vezes pensamos que não nos conhecem, mas se lhes pegarmos na mão compreendemos que estão em sintonia. Nem sempre se alcança a cura. Porém,  podemos sempre cuidar do doente, acariciar o doente”, acrescenta.

Faz no próximo dia 9 de fevereiro 6 meses que perdi a minha Mãe.

Os últimos quatro anos, digamos assim, foram passados numa intermitência perturbadora, primeiro em casa e depois numa instituição, por causa dessa doença que jamais compreenderei e que se chama Alzheimer.

Foram poucos os dias que nesses quatro anos não estive perto dela. Foi, porventura, uma das experiências mais dolorosas mas também mais gratificantes que tive ao longo da minha vida. O sofrimento dela e o nosso, dos que dela cuidávamos foi inominável, mas foi igualmente uma oportunidade para aprender a amar. Ama-se o outro sempre, mas humanamente falando é bem mais fácil amarmos na flor da idade, quando o outro nos dá tudo a que achamos que temos direito e por vezes, com alguma dose de honestidade, até achamos que nos dá demais, porque o que recebemos é imerecido.

Uma das características do Alzheimer é a ausência. A síndrome afeta a memória, outras capacidades cognitivas e comportamentos que interferem significativamente na capacidade de uma pessoa em manter as suas atividades diárias.

As mortes devido à demência mais do que duplicaram entre os anos 2000 e 2020, tornando-a a quinta principal causa de morte global em 2020; estima-se que o número de pessoas que vivem com demência passará dos 50 milhões atuais para 152 milhões em 2050.

Quando lhe foi diagnosticada a doença, a minha Mãe ainda estava muito lúcida, esquecida, mas com muitos momentos de lucidez. As suas conversas eram coerentes e embora nunca a tivesse aceitado, viveu a doença da forma que conseguiu, procurando disfarçar até ao fim. Lembro-me de um dia em que estávamos as duas na minha casa em Fátima, e viveu um daqueles delírios insuportáveis para quem está por perto: não me conhecia, achava que eu era outra pessoa, tratava-me como tal, queria sair dali o mais depressa possível porque aquela não era a sua casa… Nesse dia estava agendada uma consulta com o neurologista; seria por zoom porque a pandemia impedia deslocações. Consegui sentá-la em frente ao computador e quando nos ligámos ao médico, informei que o dia estava a ser difícil. Quando começou a falar, a minha Mãe mudou por completo. Voltou a coerência, por momentos, uma consciência inexplicável, uma lucidez perturbadora. Disse-me o médico que era típico destes doentes; quando se sentiam em perigo o intelecto recuperava alguma racionalidade e o comportamento poderia ser efetivamente coerente e, se a conversa se mantivesse na superficialidade cordial, tudo corria aparentemente bem. Assim foi, naquele dia e em tantos outros dias.

Depois veio a institucionalização no último ano de vida e todos os dias estávamos juntas. Na maior parte do tempo não me conhecia nem sabia quem eu era, mas tenho para mim que esteve sempre ligada. Não sabia o meu nome, não sabia que era filha mas mal eu chegava e me sentava ao seu lado , acariciando-lhe a mão, mudava por completo. Os meus monólogos, por fim já falava muito pouco, ligavam-na a este mundo. De vez em quando esboçava um sorriso ou acenava como que a concordar com o que ia dizendo. Sobretudo, quando trazia à conversa nomes e histórias dos netos. Pouco antes de morrer falava-lhe do Papa que viria a Fátima e que ela teria de cumprimentar. Sorria não sei se conscientemente ou porque o tom da brincadeira, na minha a voz, a levavam a isso.

Persistir em viver, mesmo diante do sofrimento, foi o maior testemunho que a minha me pode dar. Desejou a morte tantas vezes naquela frase tão repetida, e que é comum a tantos doentes e idosos, o que ando cá a fazer neste mundo para além de penar e fazer os outros sofrerem?

Sempre intui nas suas palavras uma certa profecia, porque mesmo diante do sofrimento, a minha mãe conservou sempre o seu sorriso. Uma hora antes de partir, ainda esboçou uma tentativa de me dar um beijo, ou eu pensei que era isso, quando me despedi dela, de lágrimas nos olhos à espera de um até já  ou de um “combinado” como ela dizia sempre quando lhe dizia que voltaria amanhã.

Aprendemos facilmente que o Evangelho nos propõe uma experiência de amor; visitar um idoso, acompanhar um doente é viver duplamente essa experiência. Numa sociedade que promove a eficácia em vez do amor não se consegue alcançar a beleza deste amor sofrido, que é um dom. Não sei se a minha Mãe conseguiu efetivamente descobrir e viver a potência pascal do seu sofrimento mas ensinou-me pelo menos a mim, a dignidade da vida até ao fim.

*Este artigo foi publicado também no jornal Correio dos Açores

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