Descer dos andores e caminhar ao lado

Por António Pedro Costa

Foto: Igreja Açores

O verão pinta a vida com outras cores. Em São Miguel, essas cores são intensas, vivas, quase irreais. O azul profundo do mar, onde o céu se debruça e se perde, encontra no negrume da areia quente o convite para estender o corpo e esquecer o tempo. Cada mergulho é um despertar, um renovar da alma.

Há trilhos que serpenteiam pelas encostas e pelas entranhas verdes da ilha, caminhos que se abrem entre hortênsias e pastos, levando-nos a paisagens de cortar a respiração, onde se deparam pequenas e grandes lagoas “Empadadas” e escondidas, que nos fazem imaginar o paraíso aqui na Terra. Os miradouros sobre o infinito, as quedas de água que murmuram segredos antigos são em São Miguel um convite constante à descoberta e ao deslumbre do verão.

Nas mãos, um gelado a derreter devagar na Praça Bento de Góis, na antiga capital da ilha, como se quisesse prolongar o prazer de cada sabor. Nos rostos, sorrisos fáceis, despreocupados, moldados pelo calor e pela companhia. O convívio ganha outra leveza, em que os almoços se estendem até ao fim da tarde, os serões entre conversas, gargalhadas e promessas de que amanhã haverá mais.

Há uma pulsação diferente que se instala na ilha quando o verão chega. Não é apenas o sol mais alto ou o mar mais manso, é um desejo antigo de festa e pertença que acorda com os primeiros acordes vindos dos palcos montados em cada freguesia ou vila. Os festivais de verão, que se espalham como fogueiras acesas pelo arquipélago, são muito mais do que simples encontros musicais, pois são rituais modernos de comunhão, onde a juventude se reencontra, se reinventa, e se reconhece.

Para os jovens desta ilha, é quase um chamamento, um tempo em que se quebra a rotina, se prolongam os dias até ao limite da madrugada, e se trocam olhares com quem, talvez, nunca mais se veja. Para os que vêm de outras bandas, de outras ilhas ou do continente, há um fascínio quase mítico nestas paragens perdidas no Atlântico. Aqui chegam com mochilas leves e expectativas altas, sedentos de natureza, de liberdade, e de histórias para contar depois do regresso.

Os turistas multiplicam-se aos milhares, como se a ilha tivesse sido, de repente, descoberta por todos ao mesmo tempo. E nós, que a conhecemos em silêncio e bruma, vemos agora os seus recantos mais recônditos tornarem-se cenários de partilha. São as praias escondidas, trilhos antigos, miradouros que nos encantam. Há um prazer quase infantil em mostrar os segredos da nossa terra, como quem oferece um tesouro bem guardado.

Durante séculos, as procissões religiosas foram no verão o coração batente de cada freguesia micaelense. Eram momentos altos do calendário comunitário, onde a fé, a pertença e a solenidade se entrelaçavam ao som dos andores, das filarmónicas que percorrem as ruas cobertas de flores. A labuta diária como que parava. Os sinos marcavam o tempo e o caminho. As janelas abriam-se em respeito e devoção. Tudo se ordenava em redor daquele rito que, mais do que religioso, era identitário.

Mas o tempo tem vindo a esculpir novas prioridades nas vidas dos açorianos. E hoje, em muitas localidades, as procissões parecem mais um eco longínquo de um mundo que já não é o nosso. Assistimos a elas como se olhássemos para um vitral antigo, belo, sim, mas estático. Os rostos jovens rareiam entre os figurantes. As ruas não param, os carros não se desviam. A fé tornou-se mais íntima, mais silenciosa, ou então simplesmente ausente.

A verdade incómoda é esta, o que antes unia, agora separa. O que era centro, tornou-se margem. O que era fervor, tornou-se formalismo. As procissões, nalguns casos, não passam de apêndices cerimoniais de um corpo eclesial que perdeu o pulso às novas linguagens do sagrado. E é aqui que a Igreja, se quiser continuar a ser presença viva, terá de enfrentar o seu maior desafio, ou seja, reinventar-se sem trair-se.

Não se trata de abandonar os símbolos ou as tradições, mas de lhes devolver sentido. De as enraizar numa realidade onde os jovens procuram espiritualidade com horizontes mais amplos, mais humanos, mais comprometidos.

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