“Deve assumir-se uma ética patrimonial que trave a barbárie das intervenções desregradas”

O diretor da Comissão Diocesana dos Bens Culturais da Igreja assegura que com informação e formação o Património religioso será melhor defendido e preservado

Na semana em que se assinalam os Bens Culturais da Igreja, a Diocese de Angra convidou todas as paróquias a fazerem uma exposição temporária de um objeto de arte do seu espólio. Comunicar o Património é uma iniciativa que visa promover uma maior consciência sobre a arte religiosa nos Açores. Nesta entrevista ao Sítio Igreja Açores, o Pe Duarte Melo fala, ainda, da cooperação com o Governo Regional e das duas mais recentes polémicas: a classificação do tesouro do Senhor Santo Cristo e a realização de espetáculos em igrejas, que sendo propriedade do estado, estão abertas ao culto.

 

Sítio Igreja Açores- Assinala-se a 18 de outubro o Dia dos bens Culturais da Igreja. Como é que a efeméride vai ser comemorada na região?

Pe Duarte Melo- Antes de mais, convém recordar que o Património Cultural da Igreja está ao Serviço do Evangelho e como tal realiza sempre um diálogo plural com crentes e não crentes. Por isso é de todos e identifica a epifania da Beleza de Deus e de seus mistérios.

A Diocese de Angra aceitou a proposta da Comissão dos Bens Culturais da Igreja para comemorar  esta efeméride, que se assinala no dia de S. Lucas, padroeiro dos Artistas, convidando todos as paróquias em entrarem nesta dinâmica de valorização e salvaguarda de seus preciosos bens identitários e de memória. Neste sentido, foi solicitado que cada paróquia procedesse à seleção de uma peça do seu espólio (pintura, escultura, ourivesaria, paramentaria) de valor histórico, estético, patrimonial e afetivo e que a expusesse durante um mês, em lugar de destaque e em segurança, a partir do dia 18 de Outubro.

 

Sítio Igreja Açores- A Comissão está empenhada em sensibilizar e convocar todos para a defesa do património. Como é que vai desenvolver estes objetivos durante o próximo ano?

Pe Duarte Melo- Procuraremos sempre aproximar-nos de todos os párocos e das comunidades paroquiais, consolidando uma rede de defesa patrimonial, que resulta necessariamente da consciência do valor dos seus bens. Iremos continuar a desenvolver ações de formação e de sensibilização, bem como estaremos disponíveis para assessoria técnica, como tem vindo a acontecer. É de referir que os Senhores Padres têm demonstrado preocupações patrimoniais, o que é de louvar.

 

Sítio Igreja Açores- Ainda assistimos a intervenções discricionárias, sem o devido planeamento, sem o devido enquadramento e, sobretudo, sem a devida atenção às regras mínimas que devem ser acauteladas?

Pe Duarte Melo- Como muito bem disse há muitas intervenções discricionárias, principalmente por falta de conhecimento, ou seja, por ignorância. Também identificámos um outro grave problema, muito comum: a apropriação indevida dos bens culturais e patrimoniais da Igreja. São bens de todos e não só desta geração, mas também das gerações vindouras. Deve assumir-se uma ética patrimonial que trave a barbárie das intervenções desregradas que não respeitam os mais elementares princípios. Os procedimentos diocesanos são claros e devem ser respeitados por todos, sem exceção. Também é de justiça dizer-se que temos vindo a verificar, por parte das comunidades, a uma maior preocupação, vigilância e rigor na conservação e defesa do património

 

Sítio Igreja Açores- Do seu ponto de vista, enquanto responsável pela Comissão Diocesana sente que há uma mudança de atitude do clero e das comissões fabriqueiras em relação à defesa, conservação e reabilitação do património?

Pe Duarte Melo- Sim. Temos sentido e verificado uma mudança de atitude. De uma maneira geral, os agentes pastorais estão mais atentos, evidenciando preocupações na salvaguarda do património. Este facto tem sido comprovado pelo aumento do número de pareceres que são solicitados à Comissão. No último ano pastoral, sem contar com o aconselhamento informal, foram dados 25 pareceres técnicos. A Ilha de São Miguel concentra o maior número. No entanto, temos ainda um longo percurso a percorrer. Estamos ainda longe de ter todos os problemas minimizados.

 

 Sítio Igreja Açores- A Comissão tem feito muito trabalho com a Direção Regional da Cultura até pela circunstância de muitos elementos que a integram serem funcionários. Esta parceria tem funcionado?

Pe Duarte Melo- Sim. Somos sempre poucos para defender a integridade do património. É imperativo ético da Igreja, do estado e da sociedade civil, criar parcerias assertivas para defesa do património, que está ao serviço da cultura, da democracia e do desenvolvimento das populações. Um povo que não conhece e não respeita o seu património corre o risco de entrar em anemia identitária. A globalização não dispensa a memória de um povo, bem pelo contrário, é nela que ele se afirma.

 

Sítio Igreja Açores- Corremos algum risco de, por vezes, não se saber em que âmbito é que as coisas estão a ser feitas?

Pe Duarte Melo- Não. De forma alguma. O âmbito de ação de cada organismo é muito claro e o protocolo existente entre a Direção Regional da Cultura e a Diocese estabelece as várias linhas de ação e formas de cooperação, de acordo com as competências e funções de cada um.

 

Sítio Igreja Açores- Há muito património religioso que está integrado em edifícios públicos: da região e das Câmaras. Esse levantamento está feito?

Pe Duarte Melo– O levantamento dos edifícios religiosos que são propriedade da RAA está concluído e foi confirmado pelo Direção Regional do Orçamento e Tesouro. São 13 imóveis religiosos que estão sob a tutela do Governo dos Açores.

 

Sítio Igreja Açores- Saímos recentemente de uma polémica por causa de eventos menos próprios realizados num espaço aberto ao culto. Na altura,  o Senhor Bispo anunciou que esta comissão iria enviar um memorando ao Governo a lembrar os pressupostos do acordo em vigor para a utilização destes espaço. O documento está feito?

Pe Duarte Melo- Já foi enviado ao Senhor Bispo um documento que, em traços largos, assenta a justificação nos princípios da Concordata. Irá ser dada colaboração no sentido de se elaborar um documento normativo,  respeitando sempre a autonomia das instituições.

 

Sítio Igreja Açores- Em que moldes ?

Pe Duarte Melo – Terá sempre que se definir pelos princípios da cooperação, do bom senso, do respeito pela memória histórica dos edifícios. É bom não esquecermos que estes edifícios, embora sendo propriedade do estado, nunca deixaram de ser lugares sagrados no entender das populações. Há que respeitar, imperiosamente, este sentir religioso. Para bem de todos, na região não faltam espaços onde é possível haver programação sem esses constrangimentos. Também é bom lembrar que estamos num estado laico, mas onde a maioria da população se identifica com a religião e que, no caso da Igreja católica, existe a Concordata.

 

Sítio Igreja Açores- A comissão tem por missão assessorar o prelado diocesano. Que balanço faz desta assessoria técnica?

Pe Duarte Melo- É um balanço bastante positivo. A Comissão é constituída por um conjunto de pessoas com diversas especialidades técnicas na área do património, e que são sobretudo pessoas empenhadas e com imenso sentido da gratuidade. Temos contribuído para uma maior consciência pública do património e, como já referi, para uma maior sensibilização na defesa do património. Atualmente, ninguém desconhece que há uma equipa que se dispõe a colaborar com as paróquias e seus párocos e que existem procedimentos  diocesanos. Só por má vontade ou negligência é que não é solicitada ajuda.

 

Sítio Igreja Açores-  A Diocese assinou um protocolo de cooperação com o Governo Regional para inventariação do património móvel e imóvel. Em que ponto estamos?

Pe Duarte Melo- Em relação ao património imóvel, estamos a colaborar com o SIPA (Sistema de informação para o património arquitetónico), que é uma base de dados nacional do património edificado, e a DRC já iniciou uma revisão do inventário regional. Em relação ao património imóvel, já se iniciaram os procedimentos relativos à aquisição dos sistemas informáticos para o inventário e está a trabalhar-se na identificação de bens para classificação. Ainda durante o corrente ano pastoral iremos iniciar o inventário geral da diocese.

 

Sítio Igreja Açores- A Diocese solicitou ao Governo Regional a classificação do Tesouro do Senhor Santo Cristo com base num parecer técnico desta comissão. Já há algum feedback?

Pe Duarte Melo- O Senhor Diretor Regional da Cultura já se pronunciou publicamente sobre o assunto. Como é do conhecimento geral a Assembleia Regional também avançou com uma proposta de classificação.

 

Sítio Igreja Açores- Esta iniciativa não caiu bem junto de alguns sectores, nomeadamente junto dos próprios parlamentares uma vez que “atropelou”, por assim dizer, um debate que está a decorrer no parlamento. Há possibilidade de fusão das duas propostas de forma a que a classificação seja o mais benéfica possível para este património que é de todos?

Pe Duarte Melo- Pessoalmente julgo que a proposta que está em discussão na Assembleia foi desadequada e altamente politizada. A proposta da Diocese já estava a ser trabalhada no âmbito do protocolo com a DRAC assinado em Abril e se houve atropelos não foi da nossa parte. Tanto quanto é do nosso conhecimento a Diocese nem sequer foi consultada. Se tivesse sido, teríamos informado que o processo estava em curso. Mas não esqueçamos que, infelizmente, estas situações se prestam a protagonismos.

 

Sítio Igreja Açores-  Quais são os grandes desafios em termos de defesa e preservação do património religioso dos Açores?

Pe Duarte Melo- Em primeiro lugar, há que conhecer bem aquilo que temos e que está à nossa guarda. Só protegemos o que conhecemos. Temos todos que construir e afirmar uma ética patrimonial tendo como horizonte o facto dos bens da Igreja estarem ao serviço da liturgia e do culto. Estes têm uma função de mediação e anunciam o evangelho. O inventário é uma ferramenta essencial e a classificação é, seguramente, uma ajuda à proteção e salvaguarda.

Num futuro próximo gostaríamos que existisse uma boa publicação sobre o património da Igreja dos Açores. A divulgação é uma forma de valorização e de salvaguarda e é também um elemento de afirmação cultural e de promoção junto de quem nos visita.

 

 

 

 

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