Do pó e da humildade

Por Carmo Rodeia

Sobre nós, quem é crente bem entendido, desceram na passada quarta-feira as cinzas das palmas do último domingo de ramos. E pela imposição das cinzas fomos reconduzidos ao caminho: penitência, silêncio, despojamento e conversão. Tudo em nome de uma preparação para acolhermos de coração limpo e puro a alegria renovada da Páscoa, vida nova e plena em Deus. Se não fosse essa a nossa esperança de nada serviria o caminho.

Ao sermos convidados a despojar-nos da nossa arrogância, e a depositar no grande Senhor do silêncio as dúvidas sobre a vida, sobre a morte, sobre a dor, a fraqueza e o pecado, não estamos a ser empurrados para uma espécie de tribunal inquisidor só porque sim; é porque, de facto, a nossa meta é o que importa, é nela que temos de estar focados. E para a alcançarmos, verdadeiramente, temos de nos livrar das tralhas que nos consomem e nos amarguram. O caminho é só o meio e para o cumprirmos, a tradição cristã, particularmente sustentada na liturgia, aponta para um itinerário com três passos: a oração, o jejum,  e o cuidado do outro.

Entrámos num tempo favorável, diz-nos a liturgia.Depois da festa, o silêncio; depois da alegria, o pó. É a alegoria da nossa condição… assim definida pelo Papa Francisco e pelo momento litúrgico que inaugura a Quaresma. Mas se o pó nos lembra a nossa fragilidade e a nossa finitude, é também a imagem dura de uma violência que reduz a cinzas tantos e tantos seres humanos, em diferentes lugares do mundo que nos rodeia, ou de uma mentalidade descartável que vota ao abandono vidas inocentes.

Na Missa que marcou o início do tempo litúrgico da Quaresma, Francisco disse: “Olhamos em volta e vemos pó de morte, vidas reduzidas a cinzas: escombros, destruição, guerra. Vidas de bebés inocentes não acolhidos, vidas de pobres rejeitados, vidas de idosos descartados”.

Neste contexto, o Papa recordou que “somos um bocado de pó no universo, mas somos o pó amado por Deus”. Para Francisco, apesar da fragilidade da nossa condição, Deus olha-nos com expetativa. “Somos cidadãos do céu. E o amor a Deus e ao próximo é o passaporte para o céu; é o nosso passaporte. Não poderão valer-nos os bens terrenos que possuímos – são pó que desaparece! –, mas salvar-nos-á o amor que oferecemos na família, no trabalho, na Igreja, no mundo: tal amor permanecerá para sempre” salientou o Papa na Eucaristia que marcou o início da Quaresma.

Neste segundo dia da Quaresma há um desafio premente: a decisão de nos colocarmos decididamente no caminho de Jesus. Olhar Jesus, o que fez Jesus e seguir com Ele. Mas conseguiremos fazer isso? Com este barulho e com esta confusão em que estamos?

“O coração humano é um mar gelado, um oceano gelado” como diz Tchekov. E, na vida, experimentamos esse gelo muito mais facilmente do que às vezes imaginamos.

Ou porque temos medo, ou porque nos sentimos superiores aos outros, ou, ainda, porque nos deixamos abater pelo mal e pelas partidas da vida. Sobretudo, quando a montanha é grande para ser subida ou as águas demasiado profundas para se lhes sobreviver. Há momentos em que a onda gigante chega…

Acho que já aqui contei esta história mas julgo que nunca é demais partilhá-la na esperança de que tenha leitores novos.

Na primeira quinta-feira da Quaresma de 2014, passada em casa de uns amigos em Vila Franca do Campo, mais concretamente na Ponta Garça, estava a fazer reportagem com os Romeiros de São Pedro e, por um daqueles acasos que só o Espírito Santo sabe proporcionar, e explicar, vivi uma das noites mais intensas (e igualmente decisiva) da minha vida, daquelas que nos viram do avesso, diante de toda a fragilidade e nos colocam uma só pergunta: a vida não pode ser só isto. Uma sociedade não pode ser só isto. Os nossos dias não podem ser só isto. E, de repente, apercebemo-nos de que a vida tomou conta de nós e deixámos de ter tempo para trazer ao de cima, para verbalizar, para dar estatuto político e público a dimensões que são empurradas para uma clandestinidade nos nossos quotidianos. No fundo, porque é que estamos aqui? Qual é o sentido das nossas vidas? O que é que fizemos, o que é que não fizemos? E, então requeremos um daqueles abraços de Deus, cientes de que mesmo que todos os tribunais do mundo nos condenassem teríamos sempre garantido o abraço de Deus, na sua infinita misericórdia, como invocamos no ato de contrição.

Nessa noite de encontro com a vida, dedilhando um terço cheio de romarias e de contas feitas de dor, cansaço e muita esperança que me foi oferecido, senti que não podia desistir, por maior que fosse (e era!) a angústia, a hesitação e a vontade de desistir.

A experiência da fé serve justamente para aumentar o nosso desejo de Deus e intensificar a nossa procura, cintes de que Deus salva-nos apesar de não sermos merecedores, como nos diz aquela passagem de São João: por mais que o nosso coração nos acuse, o amor de Deus é sempre maior que o nosso coração. É para esta confiança que nos alerta este caminho quaresmal. Foi isso que aprendi, finalmente, naquela noite de quinta-feira.

Não tenho dúvida de que a Quaresma é o tempo favorável. Foi e continua a ser. Desde que nos abramos ao seu mistério.

Desejo a todos uma boa Quaresma.

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