Dos 65 anos de prisão e outras insanidades

Por Carmo Rodeia

O presidente da Assembleia da República voltou a recusar um projeto de lei do Chega, que eufemisticamente passou de uma proposta que previa a prisão perpétua para uma pena máxima de 65 anos, para punir crimes de “especial perversidade”, nomeadamente o homicídio de crianças. A proposta surge depois do caso da menina Jessica, de Setúbal . O Chega reagiu de imediato com um comunicado em que acusa Santos Silva de estar a prejudicar a democracia ao impedir a discussão dos seus projetos. Já vamos no terceiro projecto de diploma que o Chega vê chumbado antes mesmo de discutido. E bem!

Não coloco em causa a legitimidade do Chega para apresentar tais medidas. Os deputados eleitos pelo Chega têm tanta legitimidade como todos os restantes, mas faz-me alguma espécie que membros de um órgão de soberania possam apresentar propostas que são contrárias à constituição, que é o quadro normativo que regula as nossas relações enquanto membros desta sociedade que é Portugal.

Situemo-nos nesta questão da Prisão perpétua. A prisão perpétua foi abolida em Portugal , e bem, em 1888, ainda no tempo da monarquia. Mesmo a constituição do Estado Novo, que não era propriamente dito o melhor exemplo de respeito por liberdades e garantias individuais, aprovada em 1933, não a reintegrou.

Se somarmos aos 65 anos propostos pelo Chega os 16 a partir dos quais um cidadão é considerado imputável, atingimos a esperança média de vida. Por isso, eufemisticamente  o que o Chega quer é mesmo a prisão perpétua que é tão intolerável como  é a pena de morte. Sobretudo para um cristão e o Chega, pelo menos nas palavras, está cheio de cristãos. Cristãos participativos que vão à missa e comungam. Cristãos participativos que integram movimentos e estruturas dentro das comunidades paroquiais. Cristãos que não se coíbem de o afirmar publicamente e que até se deixam filmar à porta da Igreja e fazem questão de mostrar que são cristãos, recordando até slogans do antigamente- Deus, Pátria e família- para mostrar o patriotismo e a sua ideia de sociedade. Ainda todos nos lembramos das declarações do líder do Chega que na última noite eleitoral pediu desculpa por ter chegado tarde ao “quartel general” do partido e justificou invocando que tinha ido à missa.

Como já afirmou bastas vezes o Papa Francisco a pena de prisão perpétua é outra forma de condenação à morte. A nossa tradição humanista, baseada em valores de matriz cristã, impele-nos a acreditar na capacidade de regeneração da pessoa que é também outra forma de conversão, que é sempre possível. Mesmo que às vezes nos pareça que as segundas oportunidades não são aproveitadas. Porque em Deus tudo é possível. Sempre! Como, de resto, nos recorda o Evangelho de São João: por mais que o nosso coração acuse, Deus é maior do que o nosso Coração. A sua misericórdia é infinita, como foi para a mulher adultera, para o publicano e para todos os que lhe fizeram frente sem o compreender.

Nunca mais acabariam os exemplos plasmados nos textos bíblicos para mostrar como tantas propostas que por aí vamos ouvindo são absolutamente contrárias aos mandamentos de Jesus: desde a relação com os imigrantes, à relação com os ciganos e os estrangeiros, à caridade para com quem precisa. Numa palavra a misericórdia de Deus, e já agora dos homens configurados à Sua pessoa e imagem.

Valeria a pena lembrar por exemplo ( e é tão só um exemplo!) o livro do Êxodo para que não se oprima o estrangeiro ou se roube o salário ou maltrate o estrangeiro…Jesus haveria de prosseguir durante a sua vida pública com todos os exemplos, alguns deles já nomeados…

Claro que tudo pode servir para tudo, e até para o seu contrário desde que sirva os interesses próprios e por isso não fico admirada que políticos, usando da retórica, ainda que eivada de populismos e de inverdades, possam fazer uma interpretação da realidade vendendo-a e pintando-a da forma que bem entendem; o que me espanta é que pessoas com capacidade de discernimento possam seguir esses políticos. Acompanhando-os na defesa de penas de prisão intermináveis a outros disparates que não fossem ser perigosas não passariam de propostas nocivas, desadequadas e até insultuosas para um estado democrático.

Ás vezes não entendo, é só isso…

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