Esculpir o tempo, parte I

Pelo Pe. Teodoro Medeiros

O que se acrescentou à fotografia quando passou a ter movimento? Mais do que realismo, deu-se-lhe a dimensão do tempo: ganhou a propriedade de poder contar estórias. Foi um processo simples, quase uma brincadeira, mas deu origem a uma arte e mudou a História. Como uma nova religião.

No seu livro de apontamentos sobre esta arte, Tarkovsky defende que o segredo reside aí: os escultores tomam a pedra e tiram-lhe o que está a mais; os cineastas pegam no tempo e fazem-lhe o mesmo. “Esculpir o Tempo” torna-se assim título do livro e nome do ofício. Mas não será apenas uma forma poética de descrever o que se vê no ecrã?

Para o realizador russo, era credo e estratégia, era o método e a sua essência: é possível fazer-se um filme sem personagens, sem música, sem montagem, sem história e até sem objetivo; mas não se consegue tirar-lhe a duração diegética, um antes e um depois, por iguais que sejam. Nos livros, a estória é descrita; nos filmes ela acontece, sem mais.

Para fugir ao esquema princípio-meio-resolução, conhecem-se muitas experiências; começar pelo desfecho, o intragável “Irreversível”; começar a meio “Os Suspeitos do Costume”; avançar para uma fase posterior ao próprio conto, os filmes de viagens no tempo; contar várias fases da história em simultâneo, o genial “21 Gramas” do mexicano Iñárritu.

São experiências que dão os seus frutos, ainda que pequem por um certo artificialismo. “Memento” de Christopher Nolan merece essa reserva: muita gente o viu e gostou imenso mas admitiu que não tinha percebido bem aquilo. “21 Gramas” é formalmente perfeito e tem recheio. O que é mais comum, no entanto, são as simultaneidades, sobreposições de eventos separados em que o significado é deixado em aberto.

No célebre “O Padrinho”, o baptismo de um bebé Corleone é intercalado com as imagens de assassinos que se preparam para um “trabalho”. Entre canto e recitação de latim, ritos com os óleos santos e o rosto desconfortável de Al Pacino (padrinho da criança), surgem imagens do ritual próprio dos gangsters. Um deles, zeloso da arte do disfarce realista, chega mesmo a aproveitar o uniforme de polícia para aplicar uma multa por um mau estacionamento…

A pergunta surge, imediata e óbvia: qual a relação entre as duas linhas narrativas? Vão matar o Corleone adulto, padrinho do batismo, durante o decorrer deste? Porque está ele pouco à vontade quando olha para o padre? Desconfiará do seu destino? –“Renuncia a Satanás?” Antes que ele diga sim, começam os seus inimigos a ser abatidos. A carnificina é pontuada pelos pios compromissos do padrinho (renuncia a obras e seduções, promete baptizar-se…).

Torna-se clara a ironia dramática: Corleone nunca renunciará a nada que lhe possa estragar a sua festa pessoal; o seu batismo foi consumado há muito tempo, resgatado pelo sangue de muitos culpados ou inocentes. O seu compromisso tinha o condão de ser irrecusável, aliás. Há quem veja na cena mais do que isso: uma denúncia dos compadrios entre Igreja e Máfia, em que aquela recebe, cala e louva e esta protege e usa para retocar a própria imagem.

Apesar das estratégias e efeitos citados, não há nada de tão relativo num filme como o retrato da duração, o ritmo com que se apresenta; pode perder, por exemplo, “horas” a apresentar uma família (olá cinema McDonald). São as cenas descontraídas, às vezes até demais, em que se vêem personagens que

cumprimentam os vizinhos, o cão, o carteiro. Ou então apresentam a vida agitada de um qualquer escritório: aí é obrigatório ter pessoas que falam com todos ao mesmo tempo enquanto caminham com pressa (variante Burger King).

O problema é que nós também pensamos: “Dinner”, o recente filme com Richard Gere, coloca a cena principal logo a início mas depois perde-se a contar o passado daquela gente, no corpo do filme. É gestão do conduto e ritmo que cansa bastante; enquanto se explica-contextualiza-dá-a-conhecer, o nosso relógio diegético boceja porque sabe que o conto parou, se ficou-se pelo olhar para os entre vírgulas.

Porque o tempo do cinema faz parte do nosso ADN, do nosso respiro narrativo… as nossas mitocôndrias passam o testemunho dos primeiros homo sapiens contadores de estórias: quem sabia equilibrar o relato sem demasiadas explicações era bom narrador. Era quem ajudava os que olhavam as figuras rupestres a deixarem-se transportar. E seria querido de todos.

Esse arrebatamento não vem por meio técnico, não é exterior ao espetador; é o grande órgão de tubos da sua imaginação e que tem teclas escondidas (e haja unhas para lhes chegar). Para citar o judeu Elie Wiesel, Deus criou o Homem porque gosta de estórias: sem esse prazer, sem esse músculo do descobrir como acaba, não haveria espaço para a sétima arte.

E será que algum filme acaba? Ou prolonga a sua voz, nessa luta por nunca deixar de ter algo a dizer? Quando se revisita a última Ceia de Cristo e a sua Ressurreição, algum desses momentos acaba? Ou quando se lê que apenas um dos leprosos voltou para agradecer a graça, a cena tem uma lição definitiva (Evangelho de Lucas, capítulo 17)? A que serve a queixa de Iéchua (Jesus), sobre os que faltavam, sobre aquele estrangeiro agradecido (é um samaritano)?

São perguntas; são preâmbulo litúrgico. E as respostas pertencem ao futuro de quem vê.

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