Há mais casacos vermelhos do que se pensa

 

Foto: Igreja Açores

Pelo padre José Júlio Rocha

Óscar Schindler e a sua amante sobem a colina sobranceira à cidade. Vão a cavalo, passeando entre as árvores e os descampados, ao entardecer. Schindler é rico. Tem uma fábrica de vasilhame que carbura velozmente, à pala de várias centenas de judeus sem direitos, que lá trabalham apenas para saírem do gueto. Poucos dias antes, jantando com a mulher, Schindler tinha dito que o seu sucesso se devia a um fator que nunca tinha tido antes. “A sorte?”, perguntou a mulher… “Não”, respondeu Schindler, “a guerra”.

Agora Schindler e a amante pousam os olhos na paisagem urbana. Mas o momento é estranho. As tropas de Amon Goeth, oficial nazi, começam a desmantelar o gueto de Varsóvia. Já tinham varrido muitos judeus para os implantar no campo de concentração acabado de construir. Agora as tropas vinham à caça dos que se tinham escondido. Ouvem-se rajadas de metralhadora, tiros de pistola, relâmpagos brilham nas janelas ao entardecer, malas e outros objetos voam dos andares superiores, homens e mulheres são mortos indiscriminadamente pelas ruas. O filme é a preto e branco.

Às tantas, Schindler descobre, por entre tumulto, o vulto de uma criança pequenina a ziguezaguear pelas ruas. Terá uns quatro anos, loira e de olhos azuis. Por entre o preto e branco da tela, a única cor diferente é o casaco vermelho da menina, um truque do realizador para destacar a cena. A menina avança, sozinha, por entre os tiros, os carros blindados que cruzam as ruas, o movimento feroz dos soldados, os mortos pelo chão, as malas que caem das janelas, os gritos dos feridos, os berros dos nazis. Uma música bonita, com vozes cristalinas de crianças, acompanha os passos incertos da menina. Atravessou incólume a zona de terror e foi esconder-se debaixo de uma cómoda, numa casa perdida. Alguns capítulos mais tarde, Schindler assiste ao desmantelamento de uma vala comum. Entre os restos de gente aparece o casaco vermelho de uma criança.

Esta cena do filme “A Lista de Schindler”, de 1994, e que já vi algumas sete ou oito vezes, carrega em si toda a tragédia da morte da inocência. A máxima de Jesus é clara: “se alguém escandalizar um destes pequeninos que creem em mim, seria preferível que lhe suspendessem do pescoço a mó de um moinho e o lançassem nas profundezas do mar.” Eis a gravidade de destruir uma vida que começa.

A personalidade de uma pessoa compõe-se nos primeiríssimos anos da sua vida. Nós somos um quadro em branco: as primeiras letras, os primeiros números, os primeiros desenhos ou rabiscos são os que ficarão para sempre. As nossas primeiras experiências marcar-nos-ão indelevelmente para o resto dos nossos dias. E essas experiências são tão marcantes que o nosso cérebro as esconde no subconsciente ao ponto de quase nada recordarmos antes dos quatro, cinco anos. Aí já temos a personalidade quase formatada. Tudo o que se fizer a uma criança pequenina terá grandes consequências no seu futuro e não sei se estamos minimamente conscientes disso.

Isto é particularmente grave quando pensamos nas crianças que nascem em lares e famílias atingidas pela falta de afeto e pela violência. Terão, de alguma forma, o seu destino marcado, porque a violência gera a violência, a falta de amor torna a vida insuportável, e o futuro, demasiadas vezes, será aquilo que nós sabemos.

Isto é particularmente grave quando falamos de abusos sexuais de menores, aquilo sobre que muito se tem falado em Portugal, após os resultados do trabalho da Comissão Independente para o abuso de menores por parte da Igreja.

Isto é particularmente grave quando nos fixamos só nos abusadores e as vítimas servem apenas para enfeitar o cenário, o que parece estar acontecendo. Se a sociedade se preocupasse verdadeiramente com as vítimas, se a comunicação social, os jornalistas, os novos guardiães da pública moralidade, não andassem apenas à procura de audiências, já teria consentido que a vaga endémica de pedofilia ultrapassa em muito as portas das igrejas e espalha-se, como praga, por toda a sociedade. As contas nunca poderão ser precisas, mas consta que, só em Portugal, mais de um milhão de pessoas foram vítimas, na sua infância, de algum tipo de abuso sexual, com todos os traumas que daí possam advir. Não existem apenas as cinco, dez ou quinze mil vítimas dentro da Igreja, o que, para mim, e já o disse muitas vezes, é um pouco pior que abominável. Há, no entanto, mais de um milhão de pessoas marcadas, muitas delas na sua primeira infância. Mais de dez por cento dos portugueses e portuguesas. Quem estudou isto a fundo?

Isto é particularmente grave quando descobrimos que é no seio da família que esses crimes acontecem com mais pujança. Mas escandalizamo-nos porque resumimos a crise da família aos poucos filhos, aos divórcios, ao casamento de pessoas do mesmo sexo. Não, a crise da família já é muito velha, já tem pelo menos a idade dos abusos e da violência. Quando acordamos para esta nefasta realidade?

Isto é particularmente grave quando um Estado (Portugal) e, mais particularmente uma Região (Açores), possuem uma taxa de analfabetismo e abandono escolar pantagruélicos. A educação deve ser a aposta inexoravelmente mais importante na política de um país. Se assim não for, o resto fica afetado pelo fracasso. Só que a educação é uma aposta de muito longo prazo, cujos resultados só se começam a contar muitos anos depois. Nenhum governo está disposto a “esbanjar” dinheiro na educação para os governos furos colherem os frutos. Não temos paciência para tal.

E, entretanto, mais quantas meninas de casaco vermelho serão sacrificadas no altar da indiferença generalizada até que nos demos conta de que é nelas, na sua felicidade ou nos seus traumas, que se desenha todo o futuro?

 

*Este artigo foi publicado na edição desta sexta-feira do jornal Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio.

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