Misericórdias, Fundações e Impérios

Pelo Cónego Hélder Fonseca Mendes*

A misericórdia de Deus é eterna. É presente. É atual. Judeus, cristãos e muçulmanos chamamos a Deus O Misericordioso. A misericórdia é o melhor modelo de dizer e praticar Deus, com a «mística dos olhos abertos».

Santas Casas

É por isso que as Misericórdias são tão antigas e tão atuais. O seu quadro axiológico é o fundamento evangélico que as faz ser Igreja. De pequenas que nasceram, são grandes, sem saber como. É neste «sem saber como» que está o dinamismo intrínseco do crescimento, que, mesmo até de noite, acontece. Santas Casas mais antigas que as nossas próprias dioceses insulares.

Durante os trabalhos do último Congresso Insular das Misericórdias estiveram em cima da mesa preocupações como a indigência e a misericórdia. De fato, todos somos indigentes, mais que não seja ao nascer e ao morrer, e pelo meio, quantas vezes baste. Somo-lo sem o programar e mesmo sem querer. Essa debilidade também a encontramos no Presépio e na Cruz. Todos somos chamados à misericórdia, e ao perdão. Ninguém os merece, são puro dom que se recebe gratuitamente. Antes de haver Misericórdias, há – de haver mulheres e homens de misericórdia, porque a experimentamos primeiro na nossa vida. É deste carisma que nascem estas instituições que agora nos cabe construir e fazer crescer. Ele traduz-se numa forma canónica a que chamamos Compromisso (Estatutos) diante de Deus, dos Irmãos e da nossa própria consciência. Compromisso aceite livremente pelos irmãos, corroborado em assembleia geral e aprovado pelo Bispo Local, o que nos faz sentir em Igreja.

Mas também no último Congresso falamos de gestão e articulação de recursos humanos, da saúde, da solidão, do envelhecimento e do desemprego juvenil. A misericórdia é como o amor, nunca acaba. É paciente e criativa. A caridade, como o nome diz, é o que há de mais caro na sociedade, ou melhor é tão caro, que não tem preço. Procuramos purificar as nossas motivações como dirigentes a partir do princípio de que nunca podemos usar a fragilidade ou desgraça alheias para proveito pessoal ou aumento de capital de poder.

As Misericórdias não são irmãs da penúria. Sendo pobres, tornam-se ricas para cuidar do bem uns dos outros. Assim, têm de cuidar da sua sustentabilidade e rendimentos próprios, reprodutivos. A transparência na gestão das nossas Casas só fica bem e dá crédito a quem as dirige e aos Irmãos que as formam. Embora com uma gestão profissional, temos consciência que a sua obra social é uma resposta que mitiga a responsabilidade social do Estado. É por isso que não exigindo muito também se considera que a tributação sobre o imposto de consumo e de rendimento deve ser diferenciado por relação ao resto da economia, dita não social.

Fundações Pias

A propósito dos 40 anos da Fundação Pia Obra do Socorro de Nossa Senhora das Mercês, aprendemos a apreciar e a dar valor a essas instituições entre nós: destacam-se a Fundação Pia do Bom de Jesus a cuidar da saúde com a Clínica em Ponta Delgada, a Fundação Maria Isabel do Carmo Medeiros a velar pela educação com uma Escola na Povoação, e a Fundação de Nª. Sª. das Mercês com a obra social e de apoio a um Mosteiro de Clarissas no concelho da Ribeira Grande.

Por Fundação Pia Autónoma entende-se um conjunto de bens, quer espirituais, quer materiais, deixados por um doador ou testador para determinados fins, sendo a sua gestão entregue nos termos do direito e dos estatutos a uma pessoa jurídica (versus pessoa física) com os seus próprios órgãos de governo: um executivo (a direção) e outro de vigilância (o conselho fiscal), acompanhada pelo Bispo diocesano como executor de todas as «vontades pias», no que lhe compete velar por que sejam cumpridas, e pela correta gestão do património fundacional.

Nos últimos quarenta anos, graças à vontade e piedade dos seus instituidores – o casal Frazão – a Função Nª. Sª. das Mercês, invocação mariana ligada ao resgate de escravos em troca de bens materiais, propôs-se como finalidades velar pela promoção moral, social e profissional da juventude, sobretudo da rural, piscatória e operária com atenção particular àquela que seja oriunda das zonas mais desprotegidas; apoiar estudantes por meio de bolsas de estudo ou empréstimo para conclusão do curso; promover encontros de formação moral e profissional, inclusivamente retiros e atividades formativas, dando prioridade às famílias mais necessitadas e numerosas; auxílio ao Mosteiro das Clarissas; promoção de atividades sociais, culturais, pedagógicas e lúdicas conducentes à formação, segurança e proteção das crianças, dos jovens e dos idosos.

Certos de que há muito por fazer, o sonho do casal Frazão mantem-se de pé, graças à Fundação Pia em boa hora criada e mantida pelos seus órgãos sociais. É assim que contando com a precaridade dos anos de vida de uma pessoa e dos seus bens pode perpetuar-se um voto com efeitos de longo alcance, que de outro modo não seria possível cumprir. A modalidade mantém-se aberta para novas aventuras e novas respostas.

Impérios

A melhor medida da família humana é a mesa. Só quando todos couberem à mesa, a misericórdia há-de beijar a justiça. É por isso que quando estamos à mesa, dizemos que «é o melhor que levamos daqui». Vejamos o exemplo das chamadas Copeiras do Espírito Santo na ilha de Santa Maria. Só comem umas 30 a 40 pessoas de cada vez, se tanto, de meia em meia hora (se tanto), mas ao fim da tarde toda a gente – para não dizer toda a população da ilha – comeu. Não chega a cinco mil pessoas, contando já com mulheres e crianças. É este o nosso trabalho. A casa é pequena, a mesa ajustada, tudo é repartido e aproveitado. Nada se perde, nada se estraga. Ninguém fica com fome. Até aos doentes se vai levar sopa a casa. Não é por acaso que as Irmandades do Santo Espirito são as antecessoras das Irmandades da Misericórdia. Os irmãos levantaram um Império e entraram nele para o servir. É para isso que servem as Mesas, mesmo as Administrativas. Assim há-de ser em cerca das nossas 300 Irmandades do Espírito Santo – quase uma para cada dia do ano – e das 23 Santas Casas, herdeiras da obra do Espírito de Misericórdia que faz crescer o Reino de Deus entre nós, mesmo sem sabermos como.

*O P. Hélder Fonseca Mendes é o Vigário Geral da Diocese de Angra. ESte texto foi pedido no contexto do Ano Santo da Misericórdia, sobre o papel e a importância das MIsericórdias para concretizar as obras espirituais e temporais.

 

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