Não precisas dizer onde deixaste o coração

Pelo Padre José Júlio Rocha

Mano

“Siamo angeli com un’ala soltanto e possiamo volare solo restando abbracciati” – Luciano de Crescenzo.

Voarei, para sempre, sobre esta cidade com uma asa tua. Há lugares onde te encontro, quadros que já não vejo sem ti. Há histórias que só sei repetir como me ensinaste. Isto é ser irmão, apesar da distância e do silêncio. Continuo igual, incorrigível. Sei que contigo também assim será. Sê um verdadeiro cristão.

Um grande abraço. Tolentino.

 

É um postal de Roma, no longínquo 1996, do meu irmão José Tolentino de Mendonça, agora cardeal, numa altura em que eu já me encontrava por cá e ele passava pela Cidade Eterna. Encontrei-o entre muitos outros papéis, amontoados no tempo que passa, agora que as circunstâncias me deram a possibilidade de arrumar as coisas mais escondidas.

O tempo e a vida afastaram-nos, como acontece quase sempre. Mas os amigos mantêm-se juntos, apesar do silêncio e da distância. É assim toda a verdadeira amizade.

O tempo, hoje, mantêm-se incerto, entre o sol e a chuva, como todo o abril. E eu penso nos amigos que já tive, nas amizades que o tempo varreu e nas que o tempo, por mais voraz que sopre, não removeu nem um milímetro. Estes tempos estranhos ajudam-nos a reencontrar os amigos que a pressa e a corrida dos outros dias mantêm num ficheiro intitulado “um dia hei de abraçar-te outra vez”. O dia é hoje mesmo. Tenho gasto horas inteiras de chamadas a reavivar o abraço e a saudade, a recordar cenas antigas da juventude, aconchegadas num recanto da memória, e eu tenho saudades de tanta gente e tantas saudades que nem julgava capaz de as ter.

Aos cinquenta e um anos de idade já passei a fase de um “cota”. Mas reconheço pertencer ao início de uma geração privilegiada da História. Sou de uma parcela da humanidade que conheceu o progresso, a segurança, a saúde, a longevidade como nenhuma antes. Vi chegar a televisão, os frigoríficos e máquinas de lavar, os computadores e telemóveis, as redes sociais e a água em Marte. Vesti e comi a superabundância. E, no entanto, desde a minha geração, o mundo não conseguiu atingir o grau de felicidade que essas benesses deviam proporcionar. Quanto mais curas mais doenças; quanto mais estradas mais engarrafamentos; quanto mais direitos mais revoltas; quanto mais ofertas mais descontentamento; quanta mais solidariedade mais guerra e racismo; quanto mais conforto mais egoísmo. Foram assim todas as gerações, desde a minha até agora.

De todas as benesses que a vida nos dá, a amizade é certamente das mais preciosas. Neste tempo de stresses e telemóveis de quinta geração, soubemos, ao menos, respeitar a amizade consolidada em tempos de maior dureza?

 

Lourdes, primeiro dia de Verão, (1998, diz o carimbo do postal)

Querido mano

Às vezes é da vida que temos saudade. De uma vida parecida a um encontro, onde ninguém se perde. De uma vida iluminada pela sua verdade, seja ela qual for. De uma vida, margem onde os salgueiros devolvem à nossa alegria as suas cítaras.

Um abraço grande, cheio de saudade.

Tolentino.

*Este texto foi publicado na edição desta sexta-feira, dia 10 de abril, no Diário Insular na rubrica Rua do Palácio

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