O contributo da religiosidade popular para a nova evangelização

Religiosidade popular e nova evangelização ou o contributo que a primeira pode dar à segunda: um tema muito rico, de grande atualidade para o nosso tempo e realidade cultural.

De facto, hoje é de moda e obrigatório falar de nova evangelização, e vivemos num território em que a religiosidade popular é muito radicada e expressiva: nos Açores, em São Miguel, com as suas arreigadas devoções ao Espírito Santo, ao Santo Cristo; os Romeiros, os santuários, grandes e pequenos, como, aqui no Nordeste, o de Nossa Senhora do Pranto…

 

São dois temas, duas realidades – religiosidade popular e nova evangelização – que parecem contrastantes. A nova evangelização sugere, de facto, apostolado, militância, vanguarda…, enquanto a religiosidade popular insinua intimismo, vivência pessoal, retaguarda…

 

Ambas, porém, estão e devem estar em relação uma com outra, iluminando-se e apoiando-se reciprocamente. A nova evangelização deve atingir a religiosidade popular, evangelizá-la; e a religiosidade popular é porta e base para a nova evangelização, devendo favorecê-la, promove-la…

 

Um grande desafio, portanto, que hoje e aqui se lança!

 

Serei eu capaz de expor o tema a contento? Não sou especialista nem de nova evangelização nem de religiosidade popular.

 

Trago, porém, a minha experiência pessoal e pastoral: 72 anos de vida, nascido num ambiente de religiosidade popular e lançado no mundo da evangelização; 45 anos de padre, em diversos contextos, que me exigiram abertura e adatação em termos de evangelização; a minha especialidade em história da Igreja, o ambiente internacional de estudo e vivência, capelão militar, seminários, colégio, paróquias da periferia de Lisboa, jovens… Roma, Santa Sé.

 

Como padre, pastor, vi-me sempre interpelado por esses ambientes diversificados. Ao serviço da Santa Sé, vivi na primeira linha, ao menos em termos de teorização e coordenação a nível de Igreja Universal, a temática e problemática da evangelização, nomeadamente da nova evangelização. E, na Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, vi de perto o mundo da religiosidade popular, até pela competência desse Dicastério em matéria, e pelo facto de ter sido durante a minha permanência ali que foi elaborado e ultimado o Diretório da Religiosidade Popular. Sim, porque o grande desafio era a conciliação da religiosidade popular com a Liturgia. Grandes reflexões e confrontos de tradições e vivências se fizeram ali então nesse campo. Os relatórios das Visitas ad Limina tinham um item sobre a religiosidade popular na diocese visitante. Tive acesso, durante 18 anos, a todos esses relatórios e sucessivas reflexão e orientação.

 

Começo por evidenciar e esclarecer alguns pontos sobre religiosidade popular e nova evangelização: o significado e alcance, as virtualidades, potencialidades e riscos de uma e de outra.

 

 

Nova Evangelização

 

Evangelização vem de Evangelho, que significa boa nova.

Evangelizar é levar, transmitir, a Boa Nova de Cristo, que é Boa Nova de libertação, humanização, salvação.

 

A Boa Nova de ser levada e anunciada pelos batizados, por todos eles! Assim o quis e mandou Nosso Senhor: Ide por todo o mundo, anunciai a boa nova a todos os povos (Mt 28,19).

 

O mecanismo da fé, sempre por disposição do Senhor, passa ou começa pelo anúncio: fides ex auditu – a fé vem da pregação (Rm 10, 17). É bem conhecida a passagem da Carta de São Paulo aos Romanos, que leva a essa afirmação e onde é descrito o mecanismo que leva à fé: Todo o que invocar o nome do Senhor será salvo. Mas como hão-de invocar Aquele em quem não acreditaram? E como hão-de acreditar n’Aquele de quem não ouviram falar? E como ouvirão, se ninguém lhes prega? E como pregarão, se não forem enviados? (10,13-15).
Assim se compreende a paixão e preocupação do Apóstolo: Ai de mim se não evangelizar (1 Cor 9,16), preocupação e paixão que devem ser de todos os batizados.

 

O batizado tem uma vocação e missão: a de ser luz e sal de Boa Nova no ambiente em que vive (cf. Mt 5,13-14). Fomos batizados para isso, e é no desempenho dessa missão que nos salvamos. A evangelização está no DNA do cristão. A Igreja nasceu na manhã de Pentecostes, por obra da evangelização dos Apóstolos. Assim o quis Jesus.

 

A evangelização é um empenho de todos: clero e laicado. Considero feliz a crise pós-conciliar do clero, que permitiu redescobrir a vocação do leigo para a evangelização. Como a diminuição do clero levou à pujança do apostolado dos leigos!

 

Na evangelização há, porém, que ter um duplo cuidado: fidelidade à mensagem pura, genuína, como no-la deu o Mestre, e adaptação ao destinatário. É a atenção ao duplo termo: o terminus a quo e o terminus ad quem, muito falado e recomendado nas traduções. Se não houver essa dupla atenção, facilmente o tradutor se torna traditor (traidor). E nós podemos trair a mensagem no compreendê-la e no transmiti-la. Daí a célebre e feliz expressão da fidelidade dinâmica.

 

A preocupação da ortodoxia é bem conhecida, também na Bíblia. Jesus Cristo é sempre o mesmo, ontem, hoje e por toda a eternidade (He 13,8). Também a sua mensagem é sempre a mesma. Como São Paulo alertava para o perigo de deformar a doutrina, e como sofria com isso! São os três primeiros capítulos da primeira Carta aos Coríntios, em defesa da sua pregação contra a de outros, nomeadamente do bem-falante Apolo. Na segunda Carta aos mesmos, Paulo alerta para o perigo dos subterfúgios, da astúcia na transmissão do Evangelho: não se adultere a Palavra de Deus! (cf. 4,2). Na Carta aos Gálatas, depois de deplorar a facilidade como alguns se desviaram da sã doutrina para ir atrás de outros pregadores, Paulo vai ao extremo de condenar um eventual Anjo que viesse pregar um Evangelho diferente do que ele pregou: que seja anátema esse Anjo! (cf. 1,6-8). O perigo era, e continua a ser, real. São João também alerta para o mesmo perigo, e chega ao ponto de pedir que nem se saúdem esses que pregam outras doutrinas (cf. 2 Jo 7-11).

 

Já o Antigo Testamento tem páginas fortes contra os falsos profetas, e o próprio Nosso Senhor alertou para a ação destes, que virão atuar como lobos com veste de ovelhas (cf. Mt 7,15).

 

Daí que o evangelizador tenha de se precaver contra esse risco da deformação da mensagem; privilegie, portanto, e dê espaço ao conhecimento, ao estudo, formação e discernimento, com muita humildade, que é a virtude dos inteligentes; nunca se sobrepondo à mensagem de Cristo, mas servindo-a em comunhão com a Igreja e o Magistério desta, a quem, em última análise, cabem o discernimento e a orientação.

 

Alargaria esse cuidado de ortodoxia à oração, à religiosidade popular, que também deve andar em harmonia com a fé. É conhecido o paralelismo lex credendi-lex orandi, também ele expressivo da preocupação da Igreja e seu Magistério, e que significa que as ideias subjacentes à oração – não há oração sem ideias – devam andar em sintonia com a fé que se professa. Daí a responsabilidade da Santa Sé de confirmar textos e traduções litúrgicas.

 

Mas igual cuidado o evangelizador deve ter com o destinatário da mensagem. Não deve apenas ser fiel à mensagem, mas procurar a forma de transmiti-la e de se fazer compreender; caso contrário, esvaziará, não servirá a mensagem. Aqui é que se radica a importância da nova evangelização. A sua novidade está na exigência de adatá-la ao tempo e espaço em que é feita.

 

Daí que a evangelização seja e deva ser sempre nova, adatada ao destinatário, no tempo e no espaço, para que, sem ser adulterada, possa ser compreendida e acolhida. É esse portanto um grande desafio.

 

Na sua história bimilenária, a Igreja, com maior ou menor visibilidade e coerência, sempre se empenhou nesse esforço de adatação. Fê-lo numa constante dialéctica de conservadores-progressistas, que é, em fim de contas, a dialéctica de que normalmente se serve o Espírito Santo para animar e governar a Igreja.

 

A missionação dos séculos XVI e XVII é um exemplo disso. Baste recordar a genialidade dos jesuítas, de um São Francisco Xavier, Valignano no Japão, Mateus Ricci na China, São João de Brito e Roberto Nobili na Índia, as reduções da América Latina… Nem tudo foram luzes, mas o perene fermento da novidade da linguagem lá estava.

 

Foi com essa preocupação que nasceu a expressão NE, de que estamos a tratar. Cunhou-a João Paulo II no Haiti, em 1983, na XIX Assembleia Geral do CELAM (Conselho Episcopal Latino-americano). Impunha-se uma nova evangelização; dizia-o então João Paulo II em referência à velha Europa, que precisava de ser reevangelizada. Já João XXIII, com o Concílio Vaticano II, e Paulo VI com a acentuação que fez do diálogo da Igreja com o mundo – a Encíclica programática do seu Pontificado, Ecclesiam suam, sobre o diálogo – iam nesse sentido da urgência de uma nova evangelização. O que João Paulo II pedia para a Europa logo se aplicou ao resto do mundo: impunha-se uma nova evangelização geral; nova – precisava ele – não no conteúdo, que é sempre o mesmo, aliás Jesus Cristo – mas no fervor, nas expressões e nos métodos. É este o significado e alcance da expressão “nova evangelização”.

 

Este empenho, este novo dinamismo evangelizador, tornou-se a obsessão de João Paulo II, que teve um pontificado de abertura, se não de ideias, certamente de contactos: viagens, meios de comunicação social…

 

Bento XVI, preocupado com o relativismo imperante, pôs o acento na fidelidade à mensagem, na tal dialéctica hegeliana da tese-antítese-síntese. Terá reposto o acento na tese, para equilibrar o acento que outros punham na antítese. Mas também ele se preocupou com a nova evangelização; foi ele que criou, em 2010, o Pontifício Conselho para a Nova Evangelização, e foi ele que convocou, para 2012, o Sínodo sobre a nova evangelização, cuja mensagem é bem reveladora da nova sensibilidade e exigência evangelizadoras.

 

Recordo a impressão que me fez e o entusiasmo que senti ao ler, e traduzir para a revista Lumen, essa Mensagem. Já a escolha da passagem evangélica do encontro de Jesus com a Samaritana no posso de Jacob é significativa: Jesus, o evangelizador, que vai ao poço e ali se põe a falar com uma mulher, ainda por cima samaritana, dessa categoria de pessoas meio-pagãs, mal vistas pelos judeus observantes, com quem estes evitavam até o contato. É junto de um poço, a um destinatário pouco recomendável, que Jesus dá a sua mensagem. E como o faz! Através de uma conversação banal, onde tudo serve para estabelecer diálogo, compreensão, acolhimento; um estilo, portanto, de proximidade, positivo, que atinge o objectivo: a samaritana de evangelizada se faz evangelizadora! Depois, os sucessivos pontos dessa mensagem, sempre num estilo positivo, de proposta, colhendo os dados positivos de categorias e situações que um evangelizado de velho estilo consideraria problemáticos. É ver, no n. 6 da Mensagem, o modo como os bispos do Sínodo olham para o mundo contemporâneo: um mundo cheio de contradições e de desafios, mas que continua a ser criação de Deus, ferido certamente pelo mal, mas sempre o mundo que Deus ama! Ver como a Mensagem trata dos problemas da família, inclusive das situações chamadas irregulares, a quem a assembleia sinodal faz questão de dizer que o amor de Deus não abandona os que nelas se encontram, que também a Igreja os ama e é casa acolhedora para todos; que esses cristãos continuam a ser membros da Igreja; e eis o apelo às comunidades eclesiais para os acolherem e apoiarem (n. 7). E a forma positiva como o Sínodo encara a problemática da juventude: os bispos olham para os jovens com um olhar em nada pessimista; preocupados, sim, mas não pessimistas! Há que resgatar – dizem eles – e não mortificar a força dos entusiasmos dos jovens. Nesses entusiasmos, os bispos vêem potencialidades imensas para um futuro melhor. Há que dar aos jovens – conclui a Mensagem, referindo-se a eles – um papel ativo na obra da evangelização sobretudo do seu mundo (n. 9). Que visão serena, tão diferente de certas lamúrias contra as verduras da juventude! Esse, para o Sínodo, é o estilo da nova evangelização.

 

E vem o Papa Francisco, todo ele uma ícone desta nova abordagem do mundo, todo feito de proximidade, com um anúncio alegre e feliz. Com o Papa Francisco, com as suas acentuações e novo estilo, reconhecemos que a nova evangelização é e deve ser duplamente nova e boa: boa nova, porque é sinónimo de Evangelho, e nova nas novas exigências; duplamente boa, no sentido da alegria. E eis a exortação pós-sinodal do Papa Francisco, a Evangelii gaudium: a “alegria do Evangelho” ou também, como alguém acrescenta,  o “Evangelho da alegria”. Nela, o Papa Francisco evidencia a necessidade de uma evangelização que dê alegria, alegria espelhada em quem a dá e anuncia, e alegria no acolher e viver a mensagem anunciada. O Papa Francisco tem lindas frases sobre a boa nova da evangelização, boa nova que implica alegria. O Evangelho liberta, alegra; se, pelo contrário, acabrunha, é de duvidar se é Boa Nova de Cristo. E há tanto batizado que prefere carregar as tintas: visões, castigos etc… Depois, não nos admiremos se, não encontrando alegria e libertação na nossa proposta católica, há quem as procure nas seitas!

 

Religiosidade popular

 

O que é religiosidade, e porque “popular”?

 

Religiosidade é abertura ao religioso, um instituto do sacro, um sentimento e atitude de abertura ao transcendente, ao divino, como resposta naturalmente à própria contingência: da contingência à transcendência.

 

É um sentimento, uma atitude, transversal à humanidade; todos os povos são por natureza religiosos. O ateísmo é já um elaborado, um produto racional. O homem é, por natureza, profundamente religioso.

 

É isso o que significa religiosidade.

 

Ao conjunto das práticas, com que se exprime essa religiosidade, costuma dar-se o nome de piedade. Daí que, rigorosamente, uma coisa é a religiosidade popular e outra a piedade popular: distinções de manual. Podemos tomar as duas expressões como sinónimas.

 

Assim sendo, a religiosidade é mais vasta e anterior ao cristianismo. Jesus Cristo, revelação do Pai, veio purificar e canalizar no verdadeiro sentido a religiosidade, a relação do homem com Deus. Daí que a revelação cristã procure purificar a religiosidade, orientá-la, para que esteja em harmonia com a revelação e a acção de Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote.

 

Esta acção sacerdotal de Cristo, o que Ele, em matéria de culto, nos mandou fazer em ordem à salvação é o que se chama Liturgia, que não se identifica plenamente com as expressões da piedade popular. A Liturgia também é e deve ser popular, mas tem o seu campo e estilo específicos.

 

Daí que o adjetivo “popular” utilizado na expressão religiosidade popular tenha a ver com a distinção desta com a Liturgia, contrapondo-se ao carácter oficial desta última. A Liturgia é oração, celebração, diríamos “oficial”, enquanto as piedosas práticas da piedade popular são devocionais, mais do foro pessoal, privado.

 

Diz o Vaticano II, no n. 7 da Sacrosanctum Concilium, que a liturgia é a acção sagrada, pela qual, através de ritos sensíveis, se exerce, no Espírito Santo, o múnus sacerdotal de Cristo, na Igreja e pela Igreja, para a santificação do homem e a glorificação de Deus.

 

A Liturgia é, fundamentalmente, celebração dos sacramentos da salvação; daí que seja necessária. A religiosidade popular ou piedade popular é o resto celebrativo, pessoal ou comunitário e, como tal, é facultativa.

 

Seria elucidativa em matéria uma visão, embora rápida, da evolução histórica da relação entre Liturgia e religiosidade popular.

 

Na idade apostólica e sub-apostólica (século I), havia uma fusão perfeita entre Liturgia e religiosidade popular. O que então contava era Cristo e as ações rituais que Ele mandara fazer: Batismo, Eucaristia… O resto era secundário. Já havia todavia expressões de religiosidade popular de origem judaica, como a prática da oração constante, nas diversas horas do dia, de que se encontram acenos nos Atos dos Apóstolos e noutros livros neo-testamentários e testemunhos coevos.

 

No século II, também se encontram formas de religiosidade popular de matriz greco-romana e de outras religiões, como no culto dos mártires, que tem expressões do culto dos mortos.

 

Nos primeiros três séculos, os de perseguição, não há na Igreja contraposição, nem conceitual nem pastoral, entre Liturgia e religiosidade popular.

 

No século IV, assiste-se a um grande esforço de inculturação da Liturgia, com a formação de ritos diferentes. Os Sínodos e Concílios legislam em matéria, regulando templos e tempos litúrgicos (Páscoa, ano litúrgico, sacramentos…).

 

São Gregório Magno (590-604) será um grande legislador em matéria litúrgica. Também os monges terão um grande protagonismo no aperfeiçoamento da Liturgia, sobretudo em campo de oração.

 

Na Idade Média, acentua-se a separação e um certo fosso entre Liturgia e religiosidade popular, sobretudo pelo uso da língua e consequente quebra de participação popular. O Oriente cristão debate-se com a crise iconoclasta, que também teve efeitos nas expressões litúrgicas e de religiosidade popular. No Ocidente, dá-se o encontro do cristianismo com novos povos, com o reforço e alargamento da inculturação da Liturgia e da religiosidade popular.

 

E foi sobretudo na Idade Média que começou um divórcio entre as duas expressões religiosas e mesmo cultuais (Liturgia e religiosidade popular). A Liturgia continua a ser celebrada em latim; o povo alheia-se e segue o seu rumo; daí que práticas de piedade popular se celebrem comunitariamente, a par e por vezes em substituição das litúrgicas: Missa/Adoração, Saltério/Terço, Semana Santa/encenações. A Liturgia é do clero, com os leigos como meros expetadores, naturalmente por causa da língua! Difunde-se a literatura apócrifa, que, aliada a um défice de cultura bíblica e ignorância das fontes, escassa pregação e pouca catequese, o abandono da mistagogia sacramental (catequese de iniciação sacramental), e assim dão-se asas à fantasia do povo, e não só! As novas Ordens religiosas seguem um percurso diverso do do monaquismo, com igrejas, ritos e devoções próprias. E daí o alheamento e desequilíbrio: diminui o sentido da Páscoa e da sua centralidade; perde-se o sentido do sacerdócio comum dos fiéis, com a Igreja a clericalizar-se, inclusive na Liturgia. O devocional supera o litúrgico.

 

Dão-se sucessivas tentativas de reforma, como nos tempos dos Imperadores carolíngios, São Gregório VII e, sobretudo, Trento…

 

No século XIX, nasce o movimento litúrgico, a par dos movimentos bíblico e eclesiológico, todos em nome da participação, que, na Liturgia se queria plena, consciente e activa, de todos os fiéis. Havia que restituir a Liturgia ao povo; torná-la popular. A língua era o grande obstáculo a vencer, obstáculo em que o próprio João XXIII também tropeçou.

 

Será o Vaticano II o grande promotor da renovação litúrgica, sempre na necessidade e urgência de uma participação dos fiéis.

 

A religiosidade popular ressentiu-se da correcção e, por vezes, foi esquecida e maltratada, mas impunha-se uma sua purificação; reconheciam-se os seus valores e méritos, mas também os seus riscos.

 

E eis algumas passagens da Sacrosanctum Concilium e de alguns recentes documentos do Magistério sobre a religiosidade popular.

 

A piedade popular, que se exprime de diversas formas, muito divulgadas, quando genuína tem como fonte a fé e deve portanto ser apreciada e favorecida. Nas manifestações mais autênticas não se contrapõe à centralidade da Sagrada Liturgia, mas, favorecendo a fé do povo, que a considera sua conatural expressão religiosa, predispõe à celebração dos sagrados mistérios (n. 4).

 

A Liturgia é o cume para que tende a acção da Igreja e, ao mesmo tempo, é fonte donde brota toda a sua vida (n. 10).

 

A vida espiritual não se esgota, porém, na prática da Liturgia. As piedosas práticas do povo cristão também alimentam a vida dos fiéis (n. 12)

 

As piedosas práticas sejam ordenadas de modo a se harmonizarem com a Sagrada Liturgia, se inspirem nela e a ela levem (n. 13).

 

João Paulo II, na Vigesimus Quintus Annus (Dezembro de 1988):

A piedade popular não pode ser ignorada nem tratada com indiferença ou desprezo, pois é rica de valores e, já por si, exprime atitude religiosa perante Deus. Mas precisa de ser constantemente evangelizada para que a fé que exprime seja um ato cada vez mais maduro e autêntico. Aconselham-se e recomendam-se as pias práticas e formas de devoção, uma vez que não substituam ou se misturem com as celebrações litúrgicas (n. 18).

 

João Paulo II à Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, que ia tratar da religiosidade popular (21.9.2001):

A correta relação entre estas duas expressões de fé [Religiosidade popular e Liturgia] deve ter presente alguns pontos firmes. Entre eles e acima de tudo, a Liturgia é o centro da vida da Igreja e nenhuma outra expressão religiosa pode substituí-la ao mesmo nível. A religiosidade popular tem o seu natural coroamento na celebração litúrgica. Daí a necessidade de uma catequese apropriada em mérito. Quando necessário, purificar as expressões de religiosidade popular com prudência e paciência, através de contactos com os responsáveis das mesmas e uma catequese atenta e respeitosa, a menos que incongruências radicais não tornem necessárias medidas claras e imediatas. A avaliação [nestes casos] cabe ao bispo e bispos do território interessado. Dêem-se orientações comuns para evitar contradições prejudiciais ao povo cristão. Os bispos porém tenham quanto à religiosidade popular uma atitude positiva e encorajadora (n. 5).

 

Passo a elencar alguns valores da religiosidade popular, reconhecidos pelo Diretório da Religiosidade Popular e pelo Papa Francisco na Evangelii gaudium.

 

A Igreja e o seu Magistério sempre estimaram a religiosidade popular. Por vezes, a religiosidade popular foi corrigida, mas para salvaguardá-la e potenciá-la.

Diz o Diretório da Religiosida Popular que

 

– a também a religiosidade popular é uma realidade eclesial promovida e alimentada pelo Espírito Santo;

 

– produziu, ao longo da história, muitos e inegáveis frutos de graça e santidade;

 

– exprime e veicula uma nobre componente do ser humano, que é o sentimento; nela, a corporeidade tem uma forma privilegiada de exprimir a religiosidade [toques, beijos…];

 

– a religiosidade popular tem um sentido quase inato do sagrado e transcendente; manifesta genuína sede de Deus e os atributos divinos, como o da paternidade, providência, presença amorosa, misericórdia…

 

– inspira e alimenta virtudes importantes, como a paciência, a resignação cristã, o abandono confiante em Deus, a capacidade de sofrer e perceber o sentido da cruz no quotidiano, o desejo sincero de agradar a Deus e de repará-l’O, a solidariedade, o sentido de família…

 

– humaniza o divino e exprime melhor o itinerário da vida de Jesus (Natal, Paixão…);

 

– manifesta melhor o Além, a comunhão dos Santos e o culto dos mortos;

facilita a inculturação do Evangelho;

 

– insere-se melhor na alma do povo, identificando-o [como se vê na emigração];

 

– permite a transmissão geracional da fé, tornando-se em si mesma missionária, evangelizadora…

 

– facilitou e facilita a conservação da fé, contra o protestantismo, o secularismo, as seitas;

 

– quando a Liturgia era celebrada em latim, permitia a expressão religiosa do povo;

 

– pode e deve constituir uma base para a ação pastoral e a catequese;

 

– através dela, pode-se e deve-se aprofundar e amadurecer a fé.

 

Na Evangelii gaudium, o Papa Francisco também trata da religiosidade popular e seu valor (nn. 122-126):

O ser humano é simultaneamente filho e pai da cultura em que se insere (citando João Paulo II, na Fides et Ratio, 71)… Quando o Evangelho se inculturou num povo, no seu processo de transmissão cultural também transmite a fé de maneira sempre nova… O povo se evangeliza continuamente a si mesmo. Aqui ganha importância a piedade popular, verdadeira expressão da atividade missionária… A piedade popular traduz em si uma certa sede de Deus, que só os pobres e os simples podem experimentar (citando Paulo VI na Evangelii nuntiandi, 48)… A piedade popular é um tesouro da Igreja Católica (citando Bento XVI na V Conferência do CELAM, Caraíbas, Junho de 2007). Na piedade popular aparece a alma latino-americana (citando o Documento de Aparecida dessa mesma V Conferência, 264).

 

Em referência ao peregrinar, tão caro e característico da religiosidade popular: O caminhar juntos para os santuários e o participar noutras manifestações de piedade popular, levando também os filhos ou convidando outras pessoas, é em si mesmo um gesto evangelizador (citando o mesmo Documento, 264). Não coartemos nem pretendamos controlar esta força missionária! … Para compreender esta necessidade, é preciso abordá-la com o olhar do Bom Pastor, que não procura julgar, mas amar. Só a partir da conaturalidade afetiva que dá o amor é que podemos apreciar a vida teologal presente na piedade dos povos cristãos, especialmente nos pobres. Penso na fé firme das mães ao pé da cama do filho doente, que se agarram a um terço, ainda que não saibam elencar os artigos do Credo; ou na carga imensa de esperança contida numa vela que se acende, numa casa humilde, para pedir ajuda a Maria, ou nos olhares de profundo amor a Cristo crucificado. Quem ama o povo fiel de Deus não pode ver estas ações unicamente como busca natural da divindade; são a manifestação de uma vida teologal animada pela ação do Espírito santo, que foi derramado nos nossos corações (cf. Rm 5,5).

 

Mas há que reconhecer também excessos e riscos na religiosidade popular, excessos que exprimem e, por sua vez, produzem lacunas, o que acontece quando a religiosidade popular persiste em estar desarticulada ou desligada da Liturgia, da catequese, da Bíblia.

 

As práticas da religiosidade popular podem iludir e deixar num infantilismo religioso, dando excessiva importância ao ritual, ao exterior… Já os Profetas, e também Jesus Cristo, alertaram com vigor para esses riscos e desvios.

 

Uma religiosidade popular mal entendida e mal praticada pode levar a relativizar Cristo, o itinerário salvífico, o mistério pascal, a pertença à Igreja, a vida religiosa comunitária e de assembleia; a relativizar e mesmo dispensar os sacramentos; a relativizar a Sagrada Escritura; a dispensar a formação e a catequese, a desligar a religião dos empenhos da vida; a ter um conceito utilitarista da religião; a favorecer a magia, a superstição, o espetáculo, o fanatismo…

 

Daí a necessidade de evangelizar a religiosidade popular para que ela seja verdadeiramente lugar teológico e meio de evangelização; com paciência, porém, prudência e tolerância, ao estilo do Bom Pastor.

 

Para terminar, em forma de desabafo, gostaria de observar que, na minha experiência de padre, na minha idade e com o curriculum que tive a graça de percorrer, sinto-me interpelado e fico desconfortado e sem jeito, quando vejo uma igreja cheia de romeiros no primeiro domingo de cada mês, quando se prepara a romaria. E nos outros domingos onde estão eles?!

 

Quando, na Missa, vejo a igreja composta, quando há intenções por defuntos, como acontece sobretudo no Algarve, até nas Missas dominicais, e não só no Algarve!

 

Quando entro numa casa cheia de imagens e santinhos, e nela nem se batizam os filhos! Assim, algures no Alentejo, e não só!

 

Quando, em dias de funerais, vejo o adro cheio de homens na conversa, e na igreja só estão mulheres e crianças pequenas, que os adolescentes já imitam os adultos… como vi uma vez na Suíça, e não só!

 

Quando vejo tanto entusiasmo e apego aos pormenores nas procissões, cumprimento de promessas… trascurando outros aspectos também ou mais importantes.

 

Quando estou a fazer uma homilia e uma devota senhora se levanta para vir acender, mesmo diante de mim, uma vela a um Santo… Ou quando levam bebés para a Missa, por esta ser por alma do avô, e não interessa se é preciso criar ambiente de oração e de escuta e meditação da Palavra de Deus: o que interessa é participar de corpo presente; outra participação não conta!

 

Não há dúvida que, com sentido pastoral, devemos acarinhar a religiosidade popular, mas também servir-se dela para conscientizar os cristãos da importância de outras dimensões e expressões, como são, entre outras, a vida eclesial e sacramental, a Liturgia…

 

É-nos lançado, portanto um grande desafio, não só de estilo, mas também de objetivo.

 

Santo António do Nordeste, 20 de fevereiro de 2014.

Pe. João de Chaves Bairos

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