O Deus do amor é só um

Por Carmo Rodeia

“As religiões são caminhos diferentes para um mesmo ponto. Que interessa usarmos itinerários diferentes, desde que cheguemos ao mesmo objetivo”. Peço de empréstimo esta citação retirada de Cartas ao Ashram de Mahatma Gandhi, para ilustrar uma das experiências mais interessantes que vivi nos últimos dias.

De visita à Capadócia com o meu filho Gonçalo, e com a carta aos Efésios escrita por Paulo bem por perto, fiz o percurso dos primeiros cristãos neste bocadinho de terra onde hoje vivem quatro milhões de habitantes, esmagadoramente muçulmanos. E fizemo-lo acompanhados por um casal jovem, muçulmano da Bósnia- Herzegovina, ela economista e ele engenheiro eletrotécnico.

A experiência foi interessantíssima no que teve de partilha e de comunhão nas horas que estivemos juntos, durante as quais vivemos refeições, momentos de oração e desabafos sobre a situação política no mundo, em particular sobre a situação na zona dos balcãs, agora mais apaziguada, mas ainda assim sempre tensa.

A memória que tinham dos conflitos da década de 90 é dos livros, tal como a minha em relação à perseguição de que os primeiros cristãos foram alvo, nesta zona do globo e em tantas outras governadas primeiro pelos romanos e depois pelos otomanos. E, já agora, porque a experiência da perseguição é recente, já do século XX,  das famílias perseguidas pelo tirano Radovan Karadizic que liderou a proclamação de uma República Sérvia da Bósnia-Herzegovina, a 7 de abril de 1992, a qual desencadeou um feroz conflito entre o exército estatal bósnio, dirigido pelos muçulmanos, e os sérvios auxiliados pela Nova Federação Jugoslava, criada em abril de 1992 e constituída pela Sérvia e Montenegro. No início, esta fação levou a melhor ao cercar importantes cidades de maioria muçulmana e ao conseguir tomar cerca de dois terços do território. No entanto, o conflito ultrapassou a esfera militar. Ao mesmo tempo que os sérvios avançavam, iniciaram um autêntico e chocante processo de limpeza étnica, recordando os horrores nazis. Durante vários anos, as populações civis foram as mais martirizadas e impedidas de viver com dignidade. Aliás, a conversa sobre o tema começou justamente aí: ambos tínhamos a memória, não vivida mas de conhecimento, de nalgum momento termos sofrido a perseguição, a crueldade da intolerância e da incompreensão só porque professávamos uma religião diferente da do regime. Nós há dois mil anos; eles no nosso século XX.

Como disse Dietrich Bonhöffer, “Deus mistura-se com a História nas formas mais inesperadas”. Mas a procura de Deus também é tanto mais séria quanto mais aprofundarmos o conhecimento e experiência da nossa História. Naquelas curtas horas de comunhão entre crentes- católicos e muçulmanos- esta verdade não poderia ter sido mais evidente.

A dimensão religiosa é uma componente fundamental da identidade e da cultura dos povos. A diversidade de crenças, valores e de afirmações identitárias, baseadas na pertença religiosa, é um espaço privilegiado para o aprofundamento de uma cultura plural e aberta ao diálogo e, sem ele, corremos o risco de nos fecharmos no receio do desconhecido, numa visão estática das culturas, não aprendendo nada uns com os outros. A questão é particularmente pertinente no tempo que vivemos, marcado por uma forte mobilidade migratória, de gente de várias proveniências e credos religiosos.

Naquelas poucas horas- a mim pareceram-me muito poucas para aprender e conhecer mais sobre o Islão- percebi que este tempo de mudança que vivemos pode ser um tempo muito frutuoso, um tempo de esperança, como nos diz o Papa Francisco na sua encíclica Fratelli Tutti.

Aceitar o pluralismo não significa abdicar, diluir ou negar os nossos valores, mas abrirmo-nos a novos horizontes com sentido. A tolerância, a capacidade de interagir e a compreensão mútua são as únicas premissas para a paz. E como gostei de ver e partilhar orações antes e depois das refeições com gente que professa uma religião diferente da minha mas reza ao mesmo Deus, o Deus de amor e de misericórdia.

Com Mia Couto, é urgente conhecermos melhor aqueles a quem temos chamado “eles”.

 

 

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