O outro ou o próximo?

Por Carmo Rodeia

O mundo está de olhos postos na América. A terra de todos os excessos e de todas as liberdades foi de novo a votos, dois anos depois de ter escolhido indiscutivelmente Joe Biden e os democratas para governar e, de novo, com uma ameaça a pairar: o regresso de Donald Trump e o que isso pode significar para o retrocesso da Democracia, apesar da solidez das instituições.

Independentemente dos resultados finais, num país onde nos últimos anos se têm acentuado no discurso político e na sociedade o sectarismo de uma bolha forjada nas redes sociais a partir de notícias falsas;  a radicalização de posições transformando a vida numa espécie de série de televisão a preto e branco em que de um lado estão os bons e, do outro, os vilões, e estes são todos saqueles que não pensam como eu; a não aceitação de outro e até a construção de ‘realidades alternativas´ seguidas por milhões de norte-americanos, nada faz prever que os próximos tempos sejam de pacificação e de unidade na diversidade.

A invasão do Capitólio por parte de apoiantes de Trump após a vitória de Biden ou o assalto à casa da presidente da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, com o seu marido a ficar ferido na sequência de um ataque com um martelo, foram apenas dois (gravíssimos) episódios recentes que só confirmam as nossas suspeitas.

A bipolarização da sociedade norte americana é notória e, sem querer tomar qualquer partido, incomoda-me sobremaneira que um dos lados extreme posições, utilizando inclusive a religião (e a católica é usada também) para fazer valer as suas ideias, trazendo para o debate político o aborto, as questões relacionadas com a homossexualidade, entre outras. Mas, curiosamente, deixando de fora problemas como o trabalho, a pobreza e outras formas de marginalização, gerados pelo fenómeno da globalização. E quando vejo ou ouço dizerem-me `voto Trump, nos Estados Unidos, (ou Bolsonaro no Brasil) porque é cristão e contra o aborto´, pergunto-me muitas vezes o que é que me está a escapar. E não digo isto num ato de arrogância mas sim de inquietação sincera sobre a minha impotência em conseguir compreender como se pode ser em simultâneo cristão e trumpista ou cristão e bolsonarista.

De repente vem-me à cabeça “Mortes desesperadas e o futuro do Capitalismo”, publicado em 2020 pelos professores de Princeton Anne Case e Angus Deaton, onde se abordam as contradições criadas pelo capitalismo desenfreado, onde o dinheiro pode tudo, e sobretudo a falta de correspondência entre as expetativas e o que é realmente alcançado pela maioria da população ao nível da saúde, da educação ou até dos proveitos económicos, no qual se documenta o fenómeno das mortes de americanos brancos entre os 45 e os 55 anos de idade produzidas por suicídio, alcoolismo e overdoses de analgésicos à base de opiáceos que, desde a década de 90 não há maneira de abrandar, antes pelo contrário. A perda de sentido da vida acelerou-se e hoje grande parte da América- desde o cowboy ao agricultor do interior desse grande país- , embarca facilmente nas teses populistas, sobretudo se elas apresentarem uma boa teoria da conspiração, que dê sentido aos problemas complexos que o sistema não consegue resolver ou até adensa. Se há terreno fértil para os populistas, nos Estados Unidos ou noutro qualquer lugar, é justamente o descontentamento e o desconforto de pessoas que se sentem desconsideradas, porque vivem mal. Muitas não estudaram; outras dedicaram-se a negócios que não tiveram sucesso…Mais do que ideologia, este terreno é fértil para descontentes. Se acrescentarmos a este problema, as redes sociais que criam verdadeira bolhas informativas, as semi verdades ou mesmo falsidades repetidas à saciedade como se fossem verdades absolutas- como a de que houve fraude nas eleições que elegeram Biden ( nesta terça-feira gorda havia 30 candidatos republicanos que se recusavam a reconhecer a vitória de Biden, pasme-se)- está tudo claro…

Um país onde vigora o discurso do ódio, do obscurantismo, da desinformação, não pode ir longe. Por muito grande que seja…

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