O silêncio é a oração de quem sofre

Pelo Pe Teodoro Medeiros

Vinte e seis anos depois ei-lo, o filme que Scorcese decidiu fazer a partir do romance “Silêncio”. Trata-se de uma obra de ficção histórica, baseada na vida de alguém que viveu realmente, o padre Sebastião Ferreira. Português, Ferreira foi um jesuíta que renunciou à fé no Japão, durante as terríveis perseguições do séc. XVII.

O romance lê-se como uma obra inquietante, de um ritmo calmo mas sufocante e aterrador. A questão, obriga-se o leitor a colocá-la a si mesmo: quem seria eu no meio desta história de martírio? Não seria dos primeiros a fugir? O mérito é da escrita de Shusaku Endo. Este escritor japonês foi batizado em criança e dedicou muito da sua vida a tentar entender-se enquanto tal.

Daí que o livro faça reflectir sobre as diferenças entre ser-se japonês e ser-se cristão. Essas diferenças são introspecção que o autor faz a si mesmo: vale a pena sublinhar isso porque é esse o grande valor do livro. Até porque essa radiografia social e religiosa é o dilema interior do jovem Sebastião Rodrigues, o padre cuja saga acompanhamos.

A sua aventura é a de procurar Ferreira, o mentor desaparecido, o homem de coragem mítica: o homem que incutira nos outros o desejo do martírio. Que o ídolo Ferreira mostre pés de barro é apenas uma parte do problema. Dividido entre assumir o ponto de vista japonês ou manter o seu, o jovem Sebastião sofre. E nós com ele.

A espessura psicológica da letra como passá-la para um filme? Em linha de princípio, o artista da imagem tem duas ou três possibilidades; apresentá-la simbolicamente; em ações claras ou em ações subtis. Scorcese faz de tudo um pouco: cobre a paisagem de nevoeiro, faz os missionários assistirem a torturas mortais, deforma o rosto aos padres, fá-los discutir questões de princípio.

O tema é muito forte; “Silêncio” (o filme) declara desde o início que a missão é muito perigosa. Chega-se ao Japão e o primeiro sentimento é o receio de se ser traído e capturado. Os missionários “instalam-se” e quase que a única ação que lhes conhecemos é assistir a perseguições. Em termos de ritmo, é uma aposta ganha, quem vê mal respira.

Duas horas e quarenta de filme sim, mas as mais rápidas de que há memória. Aqui ninguém se aborrecerá, não há tempo para isso. Há sempre tensão, medo no ar. Terrível, é certo, mas irrepreensível a execução feita à espada: sabe-se que vai acontecer mas tudo está tranquilo… quase amigável (verdadeiros profissionais são assim).

Há quem fale de homenagens a Kurosawa. Talvez porque o ecrã se transfigure em tela, num particular momento. É distinto e até parece pertencer a outro filme (no melhor sentido, porque é espantoso). O mestre japonês da sétima arte dedicou um filme a contar a mesma história em cinco ou seis pontos de vista diferentes. Mas não será por aí que o paralelo se estabelece.

O que não nega a argúcia de apresentar dois pontos de vista opostos: os mesmos factos interpretados segundo ora um, ora o outro. Poderá parecer desconcertante, mas faria pouco sentido que o lado japonês não fosse o mais vincado. Não é essa a estocada que fura as nossas proteções?

Como puro objeto estético, não se destoa aqui das últimas obras de “Marty”: competência nos enquadramentos e gestão do movimento dos atores, cores acentuadas mesmo se escuras, recorte técnico irrepreensível (imagem, efeitos, guarda-roupa, reconstituição da época).

Existirá algum senão? O primeiro será o uso do computador para meter mais nevoeiro (e uma imagem aérea do oceano e um reflexo de face na água muito perfeito). Preciosismos que a cheiram a verniz de perfecionista aos preciosistas. Mas também confirmam que Scorcese sabia que tinha de agradar a todos.

E Hollywood apreciará, à exceção dos que olham para tudo o que tem a ver com religião como se fosse a peste. Não falta nem o moderado happy ending, a piscar o olho à regra que vai de um até cinco para os americanos (o herói vence no fim: senão não há prémios para ninguém, considere-se notificado!).

É ainda uma imagem de computador que mostra o sinal da esperança. Como é sintomático que os elementos mais artificiais da feitura sirvam os que lhe são afins na história (e estes ausentes do livro). Mas fica a curiosidade de como abordaria o projeto o mesmo homem nos anos 70. O que pôs DeNiro a recitar em frente a um espelho ou retratou a negrura da sua alma a preto e branco.

O certo é que só conseguiu financiamento depois de 26 anos. Um filme com orçamento de 40 milhões de dólares e que arrecadou em Itália quase um milhão em apenas uma semana (de Euros). A confirmar-se a tendência, será um sucesso retumbante. E permitirá ao rapaz de ascendência siciliana de realizar outros sonhos semelhantes (ele que um dia quis ser padre).

No essencial: trata-se de uma experiência “obrigatória” que encerra questões de uma fé própria de adultos. Um filme capaz de interpelar os convertidos e apelar aos indiferentes. Com matéria prima deste calibre e salas a encher, a hora é de celebração. A ocasião é apenas o maior filme espiritual dos anos 2010.

P.S.-A nomeação para apenas um Óscar desvaloriza o concurso, não o filme. Até porque revela um sentido de humor demasiado amargo.

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