Os homens não sabem voar

Pelo padre José Júlio Rocha

“Pássaros Feridos” é um extraordinário romance da australiana Colleen McCullough, cuja trama não me vou dar ao trabalho de descrever, porque, a respeito de livros, nunca contes o fim. Refiro-me a essa obra porque ela tem uma pequeníssima introdução, à laia de dedicatória, que reza assim:

«Existe uma lenda acerca de um pássaro que só canta uma vez na vida, com mais suavidade do que qualquer outra criatura sobre a Terra. A partir do momento em que deixa o ninho, começa a procurar um espinheiro e só descansa quando o encontra. Depois, cantando entre os ramos cruéis, empala-se no espinho mais agudo e mais comprido. E, morrendo, sublima a própria agonia e solta um canto mais belo do que o da cotovia e o do rouxinol. Um canto superlativo, cujo preço é a existência. Mas o mundo inteiro detém-se para o ouvir, e Deus sorri do Céu. Pois o melhor só se adquire à custa de um grande sofrimento… pelo menos, é o que diz a lenda.»

Penso que ela se referia ao chamado “pássaro do amor”, cujo nome científico é “agapornis”, um termo grego, composto de “ágape” (amor) e “ornis” (ave). Diz-se dessa ave que, quando lhe morre o parceiro de uma vida, ela se suicida num espinho, cantando. O pássaro do amor pode ser domesticado e demonstra grande afeto para com o dono. Conheci uma amiga que teve um desses pássaros. A certa altura, ela teve de se ausentar e deixou a gaiola com o pássaro ao cuidado de uma vizinha. Quando chegou, uma semana depois, a vizinha disse-lhe que o pássaro tinha morrido preso a um ramo, na gaiola.

Tenho para mim que os seres humanos deviam pertencer à classe das aves, não dos mamíferos. Elas dão-nos exemplos extraordinários de vida.

Quando éramos crianças, nós, os irmãos, tivemos uma criação de pombos. Eram para aí uns catorze ou quinze. Quando acasalavam, faziam o seu ninho e quase nunca se separavam. Todos tinham o seu nome. A história mais comovente foi a do “Sarapintado” e da “Castanha”, um pombo e uma pomba, pequenos e não muito bonitos, que deambulavam, cada um para o seu lado, alheados do bando das outras aves. Resolvemos, então, fechá-los aos dois numa casinhota de madeira com uma rede, a ver se acasalavam. E não é que aconteceu mesmo? Quando começaram a fazer o seu ninho, abrimos definitivamente a casinhota e eles começaram a fazer vida a dois. Foi uma alegria ver a primeira postura de ovos, a forma como se revezavam a chocá-los, o carinho daquele casal diminuto e humilde, comparado com a superioridade dos outros. Mas os ovos não deram nada. Uma segunda tentativa também falhou. À terceira foi de vez: nasceu-lhes um menino e eles exultaram. Criaram-no como gente grande! Mas uma doença estranha atingiu o bando: uma substância amarela aparecia-lhes na boca e alguns acabaram por morrer. A Castanha foi atingida. Cuidámos dela, tratámo-la. De nada serviu. A Castanha, ao fim de algum tempo, morreu. A reação do sarapintado foi comovente. Quase deixou de comer, não saía da casinhota, alheou-se do bando e da vida, cabeça enfiada no pescoço, dias e dias, olhos fechados numa ausência. A vida, sem a sua Castanha, não fazia sentido. Deixava-se pegar sem resistência, sem recuar um passo, não fugia de ninguém, de ninguém se aproximava. Acabou por morrer também, tenho para mim que de uma doce e inabalável tristeza.

Esta história – e muitas outras sobre aves – faz-me pensar que estes animais são mais dignos do amor do que os mamíferos, humanos incluídos muitas vezes. A maior parte das aves não luta para garantir as graças da fêmea. Os mamíferos machos, por exemplo, andam à marrada, à dentada, ao arranhão e ao coice para conquistar o grupo das fêmeas, para dominarem, para serem o macho alfa. O que ganhar, muitas vezes à custa da morte do adversário, demonstra ter genes mais saudáveis para conquistar todas as fêmeas do grupo e garantir prole saudável. Não é assim com as aves. Se pensarmos, por exemplo, nas aves-do-paraíso, abundantes na Papua e Nova Guiné, aprendemos uma lição. Os machos são muito mais vistosos e coloridos do que as fêmeas. E o acasalamento acontece quando dois machos encontram uma fêmea. Em vez de lutarem por ela, dançam e cantam, fazem piruetas e mostram as suas cores atraentes. E a fêmea escolhe o que canta ou dança melhor, ou o que tem as cores mais garridas. Escolha, por vezes, difícil. O que perde vai, sem grandes dramas, à procura de novas aventuras. O que ganha nunca mais dança: encontrou a parceira para o resto das suas vidas, muitas vezes até que a morte os separe.

Ao contrário dos mamíferos, humanos incluídos, a partir do momento em que a fêmea põe os ovos, as tarefas domésticas são repartidas na perfeição, bem como a partir da desova. E há certas aves que, quando o ninho é atacado por um predador, arrastam a asa pelo chão, dando a entender que estão feridas, para atraírem a atenção do atacante. E morrem, dando a oportunidade aos filhos para fugirem.

Que conclusão tirar? Não sei. Mas os seres humanos têm um órgão muito mais desenvolvido do que o dos outros animais: o cérebro, que tem capacidade para pensar e discernir o bem do mal, o justo do injusto, o que se deve do que não se deve fazer. Mais do que animal racional, o homem é um animal ético, capaz de regular os seus comportamentos, as suas ações e atitudes. Capaz de escolher. E capaz de educar sentimentos e instintos. A ética humana é exigente. O liberalismo ético, a sociedade do prazer, a exaltação da liberdade ao ponto de cada um poder fazer o que lhe apetece, tudo isso é uma derrota da dimensão ética do ser humano. Educar para o bem custa. A ideia de Nietzsche, ao afirmar que a verdade do ser humano está no seu instinto, é uma ideia perversa e que perverte o ser humano.

É que se, para as aves, esse amor de oblação é instintivo, para os humanos é fruto de escolhas, decisões e sacrifícios. O melhor custa sempre. António Lobo Antunes escreveu uma vez: “gosto dos animais porque nunca põem Deus em causa.”

Pois. A nossa cabecinha é complicada…

*este artigo foi publicado na edição de hoje do Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio.

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