“Os passos que escuto não se dirigem para mim”

Pelo padre José Júlio Rocha

Conheci o padre Marcello em 1992, quando fui para Roma, aos 24 anos, estudar na Accademia Alfonsiana, faculdade que me abriu as portas ao mundo. Marcello era um jovem, talvez dois ou três anos a mais do que eu, já com dois de sacerdote no currículo. Colegas de faculdade, sentávamo-nos quase sempre ao lado um do outro nas circunspectas aulas que compunham a Teologia Moral.

Marcelo era diocesano, natural e residente na região italiana de Basilicata, situada naquele enclave entre o calcanhar e a ponta da bota do mapa de Itália. Era um rapaz alegre e estava quase sempre a cantarolar tarantelas ou pedaços de ópera de Caruso. Jogávamos futsal num dos campos próximos da universidade e eu, normalmente, tinha dois pés esquerdos, comparado com ele.

Um dia fomos almoçar uma daquelas carbonaras insuportavelmente deliciosas que se confecionam nos restaurantes mais escondidos de Roma e ele contou-me a história dramática do seu primeiro Natal como sacerdote.

Tinha sido colocado na matriz de uma pequena cidade da Basilicata, eventualmente com as mesmas dimensões da nossa Angra. A cidade distava mais de setenta quilómetros da sua terra natal, onde deixara os pais e uma carrada de irmãos. Com o sangue na guelra do primeiro ano como padre, a ferver de entusiasmo, entrara na paróquia cheio de ideias novas, disposto a dar a vida pelo seu rebanho, rezando prolongadamente nas horas sós, diante do sacrário, armado de uma simpatia que abraçava toda a gente.

O dia 24 de dezembro de 1990 estava preparado. O presépio, que os italianos adoram, era magnífico, cheio de simbolismos e novidades. Celebraria duas missas nesse dia: uma às 18 horas, para crianças da catequese, e a missa do Galo para as famílias, à meia-noite. Deu tudo o que tinha. Desde ofertas para todas as crianças até à representação de um presépio vivo, ofertórios simples e significativos, rituais e linguagem que encantaram os fiéis. Todos o elogiaram e agradeceram. A cidade regressou a casa para terminar a consoada, depois da missa da meia-noite.

Já passava da uma da manhã quando Marcelo apagou as luzes da Igreja, fechou a porta principal, saiu pela sacristia e atravessou a cidade. Sozinho. Ainda ouvia os festejos e as alegrias que transpareciam das janelas das casas onde se reuniam famílias a celebrar. A cidade parecia feliz pela noite dentro, porque o Natal é, por excelência, uma festa de família, de intimidade, de partilha.

Quase feliz como uma criança que acaba de realizar os seus sonhos, Marcello foi cantarolando coisas de Natal até abrir a porta de casa e acender a luz pálida da fluorescente da cozinha. Tinha fome porque não jantara. Abriu o frigorífico. Lá dentro, um pedaço de queijo já ressequido e metade de uma caixa de leite. Foi então que o peso da dura realidade lhe caiu em cima como um camião de terra. “Tive dores de barriga de solidão”, arrematou Marcello num sorriso triste e vazio.

Não é raro a solidão ser a companheira e a madrasta do padre. E quando ela pesa – e às vezes pesa como um avião de grande porte – os dias tornam-se difíceis, solitários, angustiados. Não é raro um padre virar insensível, duro, escravo de ritualismos que lhe preencham esse vazio, mesmo que tenha tão grande fé capaz de transportar montanhas. Não é raro um padre apaixonar-se por uma mulher e o drama atinge proporções bem mais sérias.

O padre Miguel Tavares, um “menino” com sete anos de sacerdócio, da nossa Diocese, foi dos melhores jovens que conheci. Benfiquista incurável, vivia tudo com intensidade e saiu do Seminário com o entusiasmo de quem quer mudar o mundo. Rapaz de fé, de oração, de entrega, acaba de abandonar o sacerdócio, diz ele “por querer ser honesto comigo mesmo, com Deus e com as pessoas”. “Não me permito viver em ‘vidas duplas’, fonte de tanto sofrimento e angústia”. Era – sê-lo-á sempre – um excelente padre. Sinto-me um pouco destroçado por ele e por tantos outros excelentes colegas que bateram de peito contra o muro de cimento armado da solidão.

O celibato sacerdotal é um dom, não tenho dúvidas disso, um dom que é saber dar-se, de coração indiviso, por uma causa que suplanta todas as outras: a causa de Jesus.

Agora, quando se acrescenta “obrigatório” ao dom do celibato, as dúvidas assaltam-nos, com toda a honestidade.

De uma coisa tenho a certeza: a Igreja já perdeu muito mais do que ganhou com esse “obrigatório”.

*Este artigo foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio.

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