Quando a mesa é pequena e, de repente, fica vazia

Por Carmo Rodeia

Aos que tiverem paciência para ler este Entrelinhas vai parecer estranho o título, mas a verdade é que não o mudei de propósito. Quando comecei a escrever, e começo sempre pelo título ( e se não o tiver a caneta não desliza), a minha ideia era escrever inevitavelmente sobre o Natal, em particular sobre a noite da consoada. Mas folheando os jornais desta manhã deparei-me com mais uma notícia, no JN, daquelas que embargam a voz e criam um nó na garganta e que me obrigou a colocar as coisas de outra maneira:  uma mulher de 85 anos foi encontrada desmaiada em casa ao lado do filho deficiente profundo que, por não poder, não saiu de perto da mãe e não pediu ajuda. Só ao fim de quatro dias é que os vizinhos do bairro do Outeiro, no Porto, estranharam a luz e a televisão sempre ligadas, a roupa por apanhar no estendal e a ausência da mulher. Ana morreu no hospital um dia depois de ter sido encontrada. O filho, deficiente profundo de 57 anos,  ainda está internado. Segundo o jornal esta octogenária não estava sinalizada por qualquer instituição do Estado ou similar que, por exemplo, telefonasse lá para casa para saber se estava tudo bem. E, entretanto andamos todos a discutir o BMW da Senhora da Raríssimas; se ela comprava ou não vestidos de alta costura para ir à Rainha ou para receber os mais altos dignatários políticos.

A qualidade de um país vê-se na forma como trata os mais velhos  e os mais vulneráveis e a do nosso está à vista!

Portugal é atualmente o sexto país mais envelhecido do mundo e o quarto país da União Europeia com maior percentagem de idosos, logo a seguir a países como Itália e Grécia.

Em 40 anos, passou de país com a maior taxa de natalidade da Europa para detentor da taxa de natalidade mais baixa. Na década de 70, por cada idoso com mais de 65 anos, existiam duas crianças com menos de 10. Atualmente, as estatísticas mostram exatamente o oposto — por cada criança com menos de 10 anos, existem cerca de dois idosos.

20% da população portuguesa tem mais de 65 anos. Os dados são da Pordata, uma base de dados organizada pela Fundação Francisco Manuel dos Santos. Entre os 10 concelhos com maior percentagem de população acima dos 65 anos há três dos Açores: Ribeira Grande, Lagoa e Vila Franca do Campo. A Ana é só mais um nome de tantos que vivem na solidão das quatro paredes.

Nesta quadra, em que me lamento por esperar sempre por alguém que não chega; pela mesa que  tem cada vez mais espaço para colocar quinquilharias; pelos cotovelos que deixaram de se tocar porque já não há vizinhos; pela sala também já não precisar de alterações para cabermos todos e por já não se ouvir o ruído das crianças, à espera da meia noite, percebo que o silêncio que para mim se tornou ensurdecedor numa noite, afinal, é a realidade quotidiana de tantos e tantas para quem “morrer é apenas já não ser visto”.

Estamos mais velhos e mais carentes. Mais sós e mais vulneráveis. Talvez por isso, tenhamos a obrigação de ter o coração mais adulto para perceber o Natal. Aquele que é feito apenas com Jesus e com o mistério da sua encarnação. Sobretudo nós que temos tudo.

O nascimento humano de Deus deve, inaugurar em nós um ciclo esperançoso de vida, tornando-nos capazes de o levar aos outros que nada têm durante todo o ano. Às Anas que nos são próximas e que nós fingimos não ver.

Neste Natal, “acende no centro de ti uma prece/ mesmo se o lume que trazes// te parece ameaçado ou imperfeito”. Afinal há sempre muitas mais pessoas que precisam de nós.

Um Santo e Feliz Natal.

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