Secos e molhados

Por Carmo Rodeia

Acabei de ler poucas semanas antes da sua morte o livro A sombra do que fomos, de Luís Sepulveda. Comparado com as Rosas de Atacama ou O Velho que lia Romances de Amor, este livro tocou-me menos. Ainda assim, a história de três sexagenários que esperam impacientes pela chegada de um amigo, que depois de ter enfrentado os militares do regime de Pinochet, acaba morto sem qualquer tipo de gloria não deixa de ser inspiradora. Nolasco, que se ia encontrar com os camaradas de sempre- Cacho Salinas, Lolo Garmendia e Lucho Arencibia-, é vítima de um golpe do destino e morre atingido por um gira-discos, atirado de uma janela na sequência de uma desavença conjugal.

O livro, que relata memórias do exílio, sonhos desfeitos e ideais destruídos, mistura alguns aspectos cómicos com o sentido do coração puro, levando-nos a refletir uma vez mais sobre a vida. Como todos os livros de Sepúlveda que, através da literatura, abordou sempre a defesa da vida e da dignidade humana, a luta pela justiça, o elogio dos valores ecológicos, o exotismo como afirmação de que os sonhos são os mesmos em todos os lugares da Terra.

Um dia, no campo de concentração de Bergen Belsen, na Alemanha, Luis Sepúlveda encontrou gravada numa pedra uma frase de autor anónimo que dizia: “Eu estive aqui e ninguém contará a minha história”. Essa frase terá sido, segundo uma afirmação sua, o motor para contar a história de várias personagens feitas pessoas, de histórias mais ou menos marginais mas sempre com um rosto. Como o do Antonio José Bolívar Proaño, o velho que vivia em El Idilio, um lugar remoto na região amazónica dos índios shuar, com quem aprendeu a conhecer a selva e as suas leis, a respeitar os animais que a povoam, mas também a caçar e descobrir os trilhos mais indecifráveis. Proaño é a principal personagem do Velho que lia Romances de Amor.

Hoje são várias as noticias que nos dão conta de que as comunidades indias da Amazónia estão a correr perigo de vida. Além dos garimpeiros, e de todos os que os tentam expulsar do seu pedaço de Terra, em nome do desenvolvimento, há um bicho chamado Covid -19 que os persegue como persegue todos os que habitam neste planeta terra. E se ainda há zonas ditas limpas é porque não há noticias de que ele lá tenha chegado, simplesmente porque se calhar nesses lugares não há liberdade para contar histórias.

Neste samana Laudato Si, em que se assinalam os cinco anos da encíclica verde do Papa Francisco, onde ele mais do que de ambiente fala da vida das pessoas, da ecologia integral, importa refletir sobre o tema. Sobretudo porque acabámos de celebrar o 54º Dia Mundial das Comunicações Sociais da Igreja. Na mensagem para este dia, o Papa pedia aos cristãos, e aos profissionais da comunicação social em particular , para narrarem histórias de pessoas, retomando aquela que é a definição mais elementar do jornalista como aquela pessoa, que conta a outras pessoas, o que acontece a outras pessoas.

Nós, profissionais da comunicação, temos muito caminho para andar. E histórias para contar. Mais do que números. Mais do que a mera estatística contabilística a que a Covid-19 nos tem habituado. Tenho acompanhado as histórias da Sky News. Por detrás de um número há sempre rostos. Às vezes sinto falta deles nas notícias em Portugal. Mas também não admira: é de números que se faz a história da saúde neste país, como se eles contassem a história da salvação. Ficamos é sem conhecer: quem morreu, quem está sozinho, quem não tem cuidados, quem cuida e não é ouvido na hora da decisão… E, poderia continuar… Mas isso não interessa nada. Melhor é sabermos se houve mais um morto ou menos um recuperado. Ou os milhões que estão em divida. Ou das listas de espera que se agravaram por causa do tal bicharoco. E as pessoas? É disso que se faz o sucesso de um serviço Nacional de Saúde obsoleto, com profissionais descontentes mas que dão o litro, que são aplaudidos mas estão esgotados, que até gostariam de fazer de forma diferente mas que estão engolidos por um sistema que os tritura, tal como destrói os pacientes que devem sujeitar-se ao sistema, que não os trata como pessoas mas como números e clientes (conceito estranho!), sem direito a reclamar.

Não têm sido fáceis estes dias. Por causa da Covid-19 e de outras doenças, que nos colocam entre a vida e a morte.

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