“Vejo mais saudosos do regresso aos privilégios adquiridos do que profetas de um tempo novo”

Por Carmo Rodeia

A afirmação é de D. Carlos Azevedo, delegado do Conselho Pontifício da Cultura, nomeado esta semana pelo Papa Francisco membro da Comissão Pontifícia de Arqueologia Sacra.

O prelado, que vai estar em Angra do Heroísmo, esta sexta feira para proferir uma conferência sobre o Confronto entre Franscicanos e os Bispos de Angra, no final do Antigo Regime, a convite do Instituto Histórico da Ilha Terceira,  desempenha funções na Santa Sé desde 2011, com particular responsabilidade no setor dos Bens Culturais da Igreja, a que se soma este novo encargo, que tem como missão a investigação e tutela das “memórias dos primeiros séculos cristãos”.

Em entrevista ao Sítio Igreja Açores fala do momento atual do país, tipico “de um fim de ciclo cultural e económico” que exige “mudanças”, particularmente “inovação na política e conversão na pastoral”; da necessidade de Portugal- e da Europa- “se abrir a uma nova visão” que rompa com a “tirania dos mercados”.

Sobre a igreja Universal destaca o “carisma” do Papa Francisco e “o diálogo entre a razão e a fé” despoletado por Bento XVI; de uma igreja que deve estar “em permanete diálogo com a cultura”, responsabilizando-se pela introdução de valores humanistas, e que não se refugie “no tempo-volta-para-trás” porque isso “é desatino”.

À igreja diocesana, que vive um momento de transição, gerador de “expectativas e ilusões”, D. Carlos Azevedo diz que é “fundamental um balanço exigente e realista da situação eclesial, a criação de uma atitude espiritual de disponibilidade interior para mudar o que for necessário e para, despidos de qualquer jogada de poder, congregar energias para servir o crescimento das comunidades cristãs na vivência da “alegria do evangelho”, no dinamismo da transmissão entusiasta da fé”.

D. Carlos Azevedo, que é membro da Academia Portuguesa de História, doutorou-se em 1986, na Faculdade de História Eclesiástica da Universidade Gregoriana, em Roma.

O bispo presidiu à direção do Centro de Estudos de História Religiosa da UCP, de 1992 a 2001, e dirigiu a obra ‘Dicionário e História religiosa de Portugal’, editada pelo Círculo de Leitores, tendo sido também presidente da comissão científica para a publicação da Documentação Crítica de Fátima (1998-2008).

 

Sítio Igreja Açores- Vem aos Açores falar-nos do confronto entre os Franciscanos e os bispos de Angra no final do Antigo Regime. Que confrontos foram esses?

D. Carlos Azevedo- No final do século XVIII e início do século XIX, a presença franciscana vive debilidade espiritual e cultural, ausência de vocações, clima de rixas e intrigas que requerem intervenção episcopal, ainda que o Bispo de Angra esteja limitado pela força da nobreza junto do longínquo poder régio e pela Nunciatura, em fácil jogo diplomático, muito longe de perceber os ventos da história que avançam na secularização patente dentro de portas e na laicização emergente na sociedade. Infelizmente, o confronto não é entre profecia evangélica e estrutura hierárquica, mas entre instalação aburguesada e sentido novo da missão pastoral.

 

Sítio Igreja Açores- Os franciscanos foram os principais impulsionadores da fé no arquipélago pois acompanharam o Povoamento, tal como os Jesuítas. Mas esta vivacidade religiosa regular foi acompanhada por um dinamismo espiritual laico. Por exemplo a maioria dos mosteiros, conventos, recolhimentos, igrejas e ermidas açorianas foi fundada por particulares, beneméritos com objectivos diversos. É isto que pode explicar a profunda religiosidade do povo açoriano?

D. Carlos Azevedo- A presença maciça dos franciscanos e das clarissas, além do serviço económico-social que operavam, deixou traços na vivência católica, que acolheu e veiculou a natural religiosidade do povo açoriano. A generosidade e o sentimento religioso dos leigos das ilhas foi tecido fértil para bordar e burilar a proposta cristã da relação com o transcendente.

 

Sítio Igreja Açores- A espiritualidade açoriana, de resto, assenta muito nas devoções populares, como é o caso do culto à Terceira Pessoa da Trindade, que ainda hoje se mantém com grande pujança nas nove ilhas dos Açores, a centralidade do culto cristológico e a devoção mariana . Como é que a Igreja se deve relacionar com estas realidades, que são sinais de fé numa sociedade cada vez mais laica e secular?

D. Carlos Azevedo- Penso que são oportunas três atitudes nesta relação com a religiosidade popular. A primeira: de conhecimento e compreensão das expressões de religiosidade, sem preconceitos e juízos superficiais. Segunda atitude, de análise crítica dos fenómenos à luz da proposta inovadora de Jesus, na vivência da religião, criadora de libertação e de verdade, purificadora de costumes sem humanismo. Terceira atitude: a capacidade de fazer festa, de valorizar os sinais e níveis diversos de fé, para pedagogicamente, com sentido pastoral e gradualidade, os aproximar de uma forma cristã.

 

O respeito pelos monumentos do passado irmana, em humanismo, crentes e não-crentes, sem fanatismos arqueológicos”.

 

Sítio Igreja Açores- Por vezes fica-se com a sensação de que a Igreja convive menos bem com este tipo de fenómenos ou porque não os controla ou porque eles ganham contornos mais etnográficos e culturais que a igreja não aceita ou não entende.  É uma manifesta incapacidade para o diálogo com a cultura?

D. Carlos Azevedo- Os Açores têm experiências bem-sucedidas de diálogo e acompanhamento de realidades da cultura religiosa e apenas enumero, aqui, a dos romeiros. Como disse, importa entrar no mundo simples das tradições, não para controlar, mas endereçar e atualizar fenómenos de enorme carga afetiva, em ordem a renovar os modos e métodos para manter a força originária, sem reduções racionalistas.

 

Sítio Igreja Açores- A igreja é detentora de um vasto património móvel e imóvel. A exposição de peças desse património fora de um lugar de culto contribui para a dessacralização dessas peças ou pelo contrário permite a sua valorização junto de crentes e não crentes?

D. Carlos Azevedo– O recurso ao património religioso e cultural, já fora do uso litúrgico, para cultivar a memória e para a valorização pastoral – dizemos nós evangelizadora – é perspetiva inteligente. Somos responsáveis não somente por conservar, perseverar, restaurar com critérios as relíquias do passado, mas somos chamados a perceber as obras e os espaços na sua génese criadora e na sua integração num ritual e numa vivência das comunidades. O respeito pelos monumentos do passado irmana, em humanismo, crentes e não-crentes, sem fanatismos arqueológicos.

 

É curioso e aparente o contraste entre o individualismo e a massificação. Afinal convivem bem, porque são parentes”

 

Sítio Igreja Açores- Estamos a passar uma nova fase da história, com uma nova cultura marcada pelo digital onde nem sempre as pessoas e os valores contam. Estamos preparados para isto?

D. Carlos Azevedo- A cultura de marca digital está a imprimir, sobretudo nos “nativos digitais”, nas novas gerações, um modo próprio de pensar, de se relacionar com o conhecimento globalizado. Como fase de transição cultural requer-se lucidez e discernimento para não mergulhar na navegação, sempre mais vasta, sem a bússola do sentido ético que oriente em um caminho espantoso, apenas ainda a iniciar. Não estar preparado para o futuro é normal, mas refugiar-se no tempo-volta-para-trás é desatino.

 

Sítio Igreja Açores- Esta cultura digital também é massificadora porque ao mesmo tempo que cria uma ilusão de encontro provoca imensos desencontros. Desde logo porque rouba tempos aos afectos, aos abraços. É uma inevitabilidade?

D. Carlos Azevedo- Nada é inevitável para pessoas livres. A escravatura aos meios como se fossem fins tem custos graves para a vida afetiva, emocional, e cultiva um individualismo exacerbado que importa prevenir.

 

Sítio Igreja Açores- Que papel está reservado à igreja neste novo contexto?

D. Carlos Azevedo- A Igreja, como mãe e mestra, é chamada, através dos membros das suas comunidades, a exercer um limite sobre o espaço dedicado a uma nova perspetiva. Ao acolher as dimensões inovadoras para a sua metodologia pastoral, que tanta conversão requer, deve manter vivo o sentido crítico para não iludir o que se mantém central e essencial: a integralidade da pessoa.

 

Sítio Igreja Açores- Hoje vive-se muito em função da quantidade: são as estatísticas, os índices, as taxas… Quantificamos tudo mas sabemos pouco o valor das coisas. Teremos ainda capacidade de lutar contra isto, para que as pessoas não fiquem esquecidas?

D. Carlos Azevedo- A quantificação matemática e o recurso constante a índices, percentagens, estatísticas, rankings é uma verdadeira moda do pronto-a-pensar servido pela comunicação social e absorvido como orientação da verdade. É curioso e aparente o contraste entre o individualismo e a massificação. Afinal convivem bem, porque são parentes. Importa cultivar o espírito humanista, capaz de exercer visão crítica, com base em valores pessoalmente acolhidos e claramente defendidos.

 

Há anos que apelo a uma urgente pedagogia social que prepare o futuro”

 

Sítio Igreja Açores – Por vezes vive-se uma certa resignação. O caso do Estado Islâmico… a destruição massiva de bens culturais e patrimoniais que fazem parte da história da civilização. O ocidente reporta, denuncia mas age pouco. Como é que vê esta questão?

D. Carlos Azevedo– A relação do Ocidente com os fundamentalismos religiosos é débil porque a cultura do relativismo ganhou raízes e instalou-se nas políticas. As intervenções erráticas em casos recentes, os negócios escondidos, o medo paralisante estão entre as razões de uma situação complexa. Esta situação é terreno livre para a selvajaria fora de tempo, bem indicadora do falhanço de uma atitude face ao Próximo-Oriente e ao mundo islâmico. Abundou guerra e faltou pedagogia cultural. Proliferou ingenuidade e esteve ausente a difícil educação para os valores humanistas.

 

Sítio Igreja Açores- Que papel está reservado à igreja, que ao longo da história recente tem sido determinante na luta contra conflitos armados ou na pacificação de algumas zonas do globo?

D. Carlos Azevedo- Papel de servir a cultura da paz e do diálogo, com determinação diplomática, com autoridade de acima de tudo servir o bem comum da humanidade.

 

Sítio Igreja Açores- O Papa Francisco tem estado na primeira linha da denúncia. Mas parece que o ritmo deste Papa não é o ritmo das estruturas eclesiais que resistem a uma nova atitude…Corremos o risco de ficar a meio caminho?

D. Carlos Azevedo– O ritmo de um carismático, como o Papa Francisco, gera atração e simpatia. A frontalidade das suas palavras e a veemência dos seus apelos transpira bondade e verdade. As estruturas, também as eclesiais, necessitam de pessoas com sensatez, abertas à hora da história que vivemos, conscientes de trabalhar em grupo, com humildade e determinação. É um serviço paciente de coordenar com realismo e claridade os programas a traçar, desenvolver e avaliar.

Não é fácil, mas também na pastoral, é preciso servir as estruturas para recriar as instituições, torná-las operacionais expressivas de um amor entregue e concretizado.

 

Sítio Igreja Açores- O Papa virá a Portugal ao que tudo indica em 2017. O Senhor D. Carlos preparou e organizou a última visita do Papa Bento XVI ao nosso país. O que podemos esperar desta visita de Francisco?

D. Carlos Azevedo- O Papa Francisco tem-nos habituado a gestos inesperados. Ainda estamos longe de 2017, dada a voracidade do tempo, mas o trabalho de preparação começa nos corações orantes e disponíveis. Fátima constituirá o momento culminante, mas é cedo para conhecermos os contornos que a visita assumirá. A acontecer, constituirá certamente momento de graça e de renovação, porque antes de mais garante que o Papa Francisco será ainda o sucessor de Pedro em 2017.

 

Sítio Igreja Açores- Portugal e os portugueses, tal como os restantes europeus, vivem momentos difíceis. A igreja portuguesa como sempre tem sido uma ótima retaguarda social. Mas na denuncia, fala-se baixinho. O Coro não deveria engrossar a voz?

D. Carlos Azevedo– O coro é feito de várias vozes, mais agudas e mais graves, tem momento de plena voz e de surdina. Fundamental é que os pastores cantem e expressem a verdade da pauta do povo, de quem são intérpretes. O silêncio serve para sublinhar a mensagem que vem a seguir. Silêncios prolongados arriscam-se a ser abafadores dos gritos das pessoas mais desfavorecidas e mais pobres.

 

Os dois pontificados mais recentes situam-se na mesma realidade eclesial e correspondem aos mesmos desafios. Constituem, porém, dois estilos, dois modos de amar a Igreja”

 

Sítio Igreja Açores- As crises são sempre momentos de muitas oportunidades. Que oportunidades se apresentam aos portugueses?

D. Carlos Azevedo- A crise é oportunidade para pôr em causa critérios de desenvolvimento, estilos de vida e o lugar da espiritualidade na organização social. A situação atual espelha o fim de um ciclo cultural e económico, a exigir mudança nos hábitos, inovação na política e conversão na pastoral. Há anos que apelo a uma urgente pedagogia social que prepare o futuro. Vejo mais saudosos do regresso aos privilégios adquiridos, ao emprego seguro, ao Estado providente, a repetidores de reivindicações sem mínimo realismo, do que profetas de um tempo novo. Contudo, muitos jovens começam a apostar viver com simplicidade e em novo estilo de vida, algumas empresas começam a decidir com base numa economia humanista. A tirania dos mercados criou muita escravatura e a Europa, que Portugal segue, tarda em abrir-se a uma nova visão que o futuro obrigará.

 

Sítio Igreja Açores- Também na diocese de Angra vivemos um momento de transição. Que mensagem deixa ao clero açoriano?

D. Carlos Azevedo- As transições geram expectativas e criam ilusões. Considero fundamental o balanço exigente e realista da situação eclesial, a criação de uma atitude espiritual de disponibilidade interior para mudar o que for necessário e para, despidos de qualquer jogada de poder, congregar energias para servir o crescimento das comunidades cristãs na vivência da “alegria do evangelho”, no dinamismo da transmissão entusiasta da fé.

 

Sítio Igreja Açores- No Vaticano já viveu dois pontificados diferentes. Como os lê no contexto dos desafios da igreja?

D. Carlos Azevedo–  Os dois pontificados mais recentes situam-se na mesma realidade eclesial e correspondem aos mesmos desafios. Constituem, porém, dois estilos, dois modos de amar a Igreja. Bento XVI com a clarividência teológica e o diálogo prioritário da razão e da fé, do primado do amor, da verdade da caridade que critica a sociedade e a economia. A mensagem tinha acolhimento junto de pensadores, tocava as mentes à busca de sentido, longe da banalidade. A sua surpreendente renúncia valorizou a coragem do seu serviço à Igreja e a humildade para reconhecer a debilidade da saúde e de energia. Energia que a Igreja precisava.

O Papa Francisco rompe um modelo de tradição europeia, com ressaibos de chefes medievais e dá rosto a um pastor como o II Concilio do Vaticano desenhou. Estão diante de todos: a renúncia a vestes e aparatos, as intervenções fortes pronunciadas com doçura, o gosto de proximidade e de encontro, a sabedoria dos passos reformadores que passa pela envolvência de todos. A comunicação tem novo estilo: entra nas casas de todos, com linguagem de autenticidade e similitude com o evangelho de Jesus.

 

Sítio Igreja Açores- No exercicio das atuais funções já cumpriu o que diz o ditado “em Roma sê romano” ou continua a ser um português no Vaticano?

D. Carlos Azevedo- Ser português tanto quanto possível. Não quero nem preciso de ser romano. A Igreja não é romana mas católica, universal. Manter a identidade portuguesa, servir a pátria na investigação histórica e ser acolhedor de lusa gente, quero que sejam características do meu tempo romano. Costumo ser fiel às minhas raízes de homem do norte português, ainda que cultive a capacidade de adaptação que o ditado citado indica.

 

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