2022 é que vai ser! Ou não, como sempre

Pelo Padre José Júlio Rocha

“Ano novo, vida nova” é um dos adágios mais falsos que a mente humana terá alguma vez descortinado. Presumo mais interessante pensar que cada dia é uma vida nova, novas forças, nova coragem, novas energias, nova fé, até porque a entrada num ano novo não passa da passagem de um dia para o outro. 2022 é que vai ser! O quê? O que desejamos para este ano que vai começar, sobretudo depois do baldão universal da pandemia que, há dois anos, domina todos os aspetos deste terceiro calhau a contar do Sol?

2021 começou com um surto brutal da covid-19 e termina praticamente da mesma forma. Pelo meio, uma campanha mundial sem precedentes tentou vacinar toda a humanidade. Os laboratórios carburaram, Portugal, depois de dois ou três meses a titubear, lá descobriu Gouveia e Melo, que foi, pelo menos na missão que lhe foi entregue, um autêntico herói. Portugal foi o melhor país do mundo nas vacinas: estávamos ali mesmo à beira da imunidade de grupo mas, com melhor conhecimento do vírus e, sobretudo com o aparecimento de novas variantes, nunca mais se falou daquilo que se falava à boca cheia: a imunidade de grupo. De que serviu o êxito português? No mesmo dia em que Portugal dava por terminada a empresa de vacinar 85% da população, a OMS dava-nos um raspanete: de pouco serve um país bem vacinado quando grande parte do mundo, sobretudo as terras pobres, está por vacinar. Aí surgirão novas estirpes, que porão em causa o sucesso das vacinas. Dito e feito. Já não nos apetece bater palmas e o nosso egoísmo, europeu e americano, virou-se contra nós.

Para muito boa gente, a vacinação não passou de um “flop”. Falhou-se. Há até aquela história verídica do homem que teve covid-19, fez as duas vacinas, fez a vacina de reforço e apanhou outra vez o bicho. Mas não. A vacinação não foi um “flop”. Também não foi um milagre, como muitos esperavam. Mas é preciso continuar a vacinar. Todos sabemos que o maior problema é exatamente a vacinação. No mundo pobre, a vacina quase ainda não chegou para as primeiras encomendas. No mundo rico, o número de negacionistas ou pessoas que simplesmente não querem vacinar-se é assustador. Medo da vacina? Mas todos nós, em crianças, levámos carradas de vacinas e foram elas que salvaram a humanidade da trágica mortalidade infantil de até algumas dezenas de anos atrás… Se todo o mundo científico apela à vacinação, para quê toda esta onda de negação? Ah! Já sei! As redes sociais! Nelas nascem gurus que são religiosamente seguidos pelas almas mais parvas e as teorias da conspiração assumem um inchaço desmesurado.

“Não levo vacina nenhuma, porque não sou mais tolo do que os doutores”, disse-me um velhote, aqui há uns meses. Viu pela televisão que havia efeitos secundários e teve medo de morrer da vacina, ele que tomava todos os dias os seus muitos comprimidos e nunca lhes leu a bula, ou teria morrido de susto.

Entretanto, aqueles que não quiseram levar a vacina vão-se manifestando, às vezes com violência, pelo nosso mundo rico fora. Querem ter os mesmos direitos dos outros, entrar em bares e discotecas, ir ao cinema ou restaurante, ver um jogo de futebol ou ir de férias no avião. Não se podem discriminar os cidadãos em virtude das suas escolhas. É em nome da liberdade que os que odeiam a liberdade berram mais. Os governos titubeiam na hora de obrigar à vacina, vão tentando paliar a coisa, encostados entre a espada dos negacionistas e a parede do vírus.

Sobre isto, gostava de dizer duas coisas: a primeira é que Portugal tem 85% da população vacinada e está a esforçar-se para avançar no reforço. E, no entanto, 70% dos internados não levou nenhuma vacina. A segunda, em consequência, é que todos esses internamentos, tratamentos, cuidados custam muito caro. Em primeiro lugar aos profissionais de saúde que, desde há ano e meio a esta parte, vão dando a vida aos bocadinhos. Depois, ao erário público, aos nossos bolsos. Conclusão cristalina: a negligência na saúde própria é, neste caso, um atentado a todos. E depois reparem no número de negacionistas que foram parar aos ventiladores, safaram-se e, agora, apelam a que todos se vacinem.

Entretanto, chegou a “ómicron”, vinda de África, com uma capacidade de transmissão consideravelmente maior do que as anteriores, mas com uma agressividade bem menor na gravidade da doença e dos sintomas. Esta variante agridoce pode vir por bem, uma vez que as estirpes mais contagiosas tendem a fazer as outras desaparecer e, ao que parece, esta é mais benigna do que, por exemplo, a “delta”.

Ganho esperança para 2022. Pode ser o ano em que a covid-19 deixe de ser pandémica para se tornar endémica, isto é, o vírus correr entre nós, sem grandes mossas, como uma gripe normal.

Os números, todos os dias nas parangonas, assustam-nos. Obcecam-nos. No momento em que escrevo, estamos perto dos 30 mil casos diários em Portugal. Dez, quinze, vinte mortos. Esta obsessão de contar os mortos incomoda-me, como se não houvesse mais ninguém a morrer em Portugal.

No princípio da pandemia, o papa Francisco afirmou: “Estamos todos neste barco. Ninguém se salva sozinho”. Foi a maior verdade que ouvi sobre esta pandemia.

Que 2022 nos traga a sabedoria para sabermos em que barco navegamos.

*Este artigo foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio.

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