A “economia da hospitalidade” que ainda se pratica nos Açores pode ser “um contributo para a humanidade”

Debate sobre a Laudato Si e o papel dos Açores na vanguarda da defesa ambiental, transmitido na RTP Açores esta terça-feira reuniu Viriato Soromenho Marques, António Frias Martins, Francisco ferreira e Francisco Wallenstein

De cada vez que se protege um ambiente telúrico ou marítimo “está-se a prestar um contributo à humanidade” e, desse ponto de vista, os Açores podem ser um exemplo referiu esta terça-feira o professor de filosofia e pensador contemporâneo Viriato Soromenho Marques, num debate promovido pelo Instituto Católico de Cultura na RTP Açores sobre a encíclica verde do papa Francisco, Laudato Si.

“Os açores têm um registo que me parece marcado por uma maior prudência e um sentido de medida mais apurado e que radica na compreensão de que a preservação do arquipélago é um ativo económico que faz parte de uma economia da hospitalidade, que contrasta com um turismo mais intensivo que trata a paisagem como uma mercadoria que é consumida e destruída” afirmou o filósofo, que juntamente com Francisco Ferreira, da Associação ambientalista Zero; Francisco Frias Martins, professor catedrático jubilado da Universidade dos Açores e Francisco Wallenstein, docente da Universidade dos Açores, debateu um dos documentos mais marcantes deste pontificado.

“Espero que este sentido nortei a acção dos governos municipais e regionais, e sobretudo ao comportamento de cada um dos açorianos pois de cada vez que protegemos um território telúrico ou marítimo estamos a prestar um contributo à humanidade” acrescentou Viriato Soromenho Marques.

O debate promovido pelo Instituto Católico de Cultura, com o apoio do santuário do Senhor Santo Cristo dos Milagres, numa parceria com a RTP Açores tinha como ponto de partida o “grito da terra e dos pobres” de que fala Francisco na primeira grande encíclica verde da Igreja Católica.

“É um marco no pontificado do Papa mas também no entendimento e na relação que a Igreja tem com o ambiente” sublinha Viriato Soromenho Marques ao salientar o “foco interdisciplinar” entre as ciências da terra, ambientais e sociais.

“Este documento posiciona a Igreja Católica no centro do debate do futuro da habitação do homem na Terra; mas é, ao mesmo tempo,  uma discussão que visa o mundo e qualquer leitor da Laudato Si, independentemente da sua inspiração religiosa, qualquer cidadão preocupado fica tocado ética e intelectualmente pela poderosa mensagem que é transmitida” refere ainda.

“A palavra chave é a integração: a Laudato Si dá-nos uma visão integral do nosso mundo; é uma encíclica que tanto satisfaz o pensamento crítico e analítico , mas que nos convoca também a nós seres humanos a desenvolver e a promover a  capacidade de intervir”, isto é, “convoca a nossa consciência para o que está em causa e depende do nosso comportamento”, lembra por outro lado Viriato Soromenho Marques.

“O que o Papa nos diz é que somos parte e se não queremos ser vítimas temos de escolher o caminho da justiça e da reconciliação com a natureza” que “é a nossa morada e não o campo de conquista”.

“A crise ambiental, onde estão todas as outras, é uma crise de habitação da terra, que nós estamos a usar de forma perdulária” refere Viriato Soromenho Marques. “A casa comum está com problemas, nós podemos juntar a nossa ajuda através da fé” refere por seu lado Frias Martins.

“Nós dizemos que a terra está doente”, mas “a vida é que pode estar a sofrer mais” refere o professor catedrático lembrando que “ quem está em perigo é a espécie humana”.

“ Nós é que estamos em perigo: nós temos de descobrir um novo paradigma de gestão dos recursos naturais; isto não vai com pensos rápidos” sobretudo “mantendo-se o tema central da utilização desregrada dos recursos naturais”.

O professor catedrático da Universidade dos Açores destaca o problema chave desta encíclica que é a pobreza.

“O problema dos pobres tem de ser resolvido. Esta é a chave  desta encíclica: se não resolvermos o problema da distribuição da riqueza; senão conseguirmos tornar os recursos acessíveis a todos de forma sustentável estaremos seriamente em perigo”, adianta o professor a propósito dos problemas levantados pelo papa Francisco, que na sua óptica, remete para uma chave espiritual.

“ Nós como filhos de Deus respeitamos a natureza, somos parte dela e amamo-la e por isso queremos que ela se cure. Esta é a dimensão espiritual da encíclica e apresenta-la é reconhecer que cada um de nós, cristãos, podemos acrescentar valor à nossa acção”. “Esta espiritualidade de que falo faz com que nós nos embrenhemos na natureza, a respeitemos, e como filhos de Deus salvemos e curemos esta terra que está a sofrer”, adianta ainda o investigador que embora jubilado continua a a produzir trabalhos científicos agora em torno do estudo de espécies endémicas que por variadas razões foram extintas no arquipélago.

“Isto é uma preocupação” e embora reconheça que “a vida tem uma resiliência própria”, na verdade há opções que “podem ser mais ou menos determinantes”.

Aliás, a este propósito Francisco Ferreira, também ele professor universitário e ativista ambiental, lembra que é das opções da chamada “governação” que dependem muitas das consequências das diferentes crises- climática, ambiental e de recursos- que hoje o mundo atravessa.

“A Laudato Si antecipa aquilo que seriam conferencias decisivas para o planeta e é verdadeiramente global para todos os países” no que respeita “à interligação entre o planeta, as pessoas, a paz e a prosperidade”.

“Nós não nos apercebemos de que, desde a revolução industrial, temos aumentado de forma exponencial o modo como temos vindo a desrespeitar o planeta sem respeitar os seus limites.” Adianta o docente; “temos  desigualdades entre países e dentro de cada país e  a forma como os recursos estão distribuídos é geradora de conflitos que são políticos, socias e económicos, mas também com uma forte marca ecológica, que é sentido em vários lugares do mundo” diagnostica Francisco Ferreira.

Com esta encíclica, o Papa “acaba por distribuir muitas mensagens, mas , sobretudo, questiona o nosso próprio paradigma: qual é o sentido da vida e de uma sociedade que não tem em conta as circunstãncias que põem em causa as próximas gerações?” interpela.

“Não podemos continuar a usar os recursos de forma leviana; é necessária uma verdadeira educação ambiental, que é quase uma educação para a vida” frisa Francisco Ferreira.

É no domínio da educação para a cidadania e para a adopção de comportamentos sustentáveis que Francisco Wallenstein vê, por seu lado, o futuro do planeta.

“O ser humano  tem de conhecer a sua própria natureza e respeitá-la; se tiver esta postura respeitadora de si próprio também poderá respeitar o que o envolve”, pois “quem é respeitador tem comportamentos respeitosos” adianta o economista biólogo.

Francisco Wallenstein exemplifica lembrando que, muitas vezes, “a apetência desmesurada pela lucro pode gerar comportamentos desrespeitosos” por parte de empresas cujas ações podem comprometer um futuro sustentável.

“Numa economia de mercado o lucro por si só não é mau; as pessoas é que não podem tentar obtê-lo a todo o custo e é disso que o Papa Francisco fala”, esclarece ainda.

“O que está em causa é um erro de perceção:  não é um problema do mercado mas da desmesura do mercado. A compensação e o lucro são aspectos naturais desde que tenham em consideração os impactos de uma atividade” refere, por seu lado, Viriato Soromenho Marques.

“Infelizmente hoje ainda se consideram estes impactos como uma externalidade ao processo, o que não deixa de ser preocupante”.

“A solução para a crise passa por pensarmos na forma como colocamos o mercado ao serviço das populações e não o mercado a governar o mundo”, conclui o Porfessor de Filosofia da Universidade de Lisboa ao salientar que “a economia tem de ser sintonizada com a ecologia”.

“Temos de organizar a casa: reconvocar, sintonizar, harmonizar e isso passa por nós consumidores: pelas nossas escolhas, como consumismos, como nos transportamos;  são decisões que dependem de nós”.

“Há um imenso convite para percebermos que não estamos sozinhos no mundo nem como espécie nem como indivíduos e que temos de ter uma consideração acrescida pelos próximos”, adianta.

“Os Açores são um lugar do mundo maravilhoso; aqui experimentamos que  há uma marca que é anterior a nós, que é frágil e que tem de ser protegida do pior de nós próprios” refere ainda Viriato Soromenho Marques.

“Os açores têm uma apetência fantástica da natureza e que merece ainda mais cuidado” refere Francisco Ferreira que consegue identificar realidades “diferentes” de ilha para ilha, nomeadamente em questões fundamentais como a defesa do oceano, a gestão dos resíduos ou a forma como se afrontam as consequências de uma agricultura, nalguns casos já semi-intensiva.

“Os Açores têm de ser um exemplo de desenvolvimento sustentável; é preciso fazer esse esforço” adianta Francisco Ferreira.

Este foi o último de uma série de três debates sobre os documentos estruturantes do pontificado de Francisco.

“Que mandato temos para administrar a natureza; como enfrentar os desafios do desenvolvimento sem por em cheque a casa comum; seremos capazes de construir uma humanidade mais sustentável e mais próxima; como será o século do ambiente; que legado deixamos às novas gerações”, eram pistas para o debate sobre a encíclica ‘Laudato Si’ , moderado pelo jornalista Paulo Rocha, diretor da Agência Ecclesia.

O primeiro encontro foi sobre a encíclica ‘Fratelli Tutti’, com José Manuel Pureza, Maria do Céu Patrão Neves e José Júlio Rocha, e o segundo dedicado à ‘Economia de Francisco’, com reuniu João César das Neves, Gualter Furtado e Mário Fortuna.

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