A saga da Casa do Outeiro

Pelo padre José Júlio Rocha

A Casa do Outeiro, situada numa colina sobranceira à baía da Praia, é um dos solares mais bonitos da ilha Terceira. A sua história dava uma novela, mas eu, aqui, só posso contar umas dúzias de linhas daqueles enredos. A Casa do Outeiro fica na Fonte do Bastardo, ali, quem vai para o Porto Martins, um ramal que sai da Canada do Lajedo. Muitas janelas, árvores à volta e uma vista magnífica sobre a baía da Praia e o mar mesmo ali adiante.

Conta-se que João Gonçalves da Costa enriqueceu no Brasil, na segunda metade do século XIX, regressando à Terceira, sua terra natal, embora temporariamente. Foi por essa altura que mandou construir a Casa do Outeiro, obra terminada em 1881, faz agora 140 anos. João Gonçalves da Costa, além de rico, era romântico. E teve um caso, prolongado, com uma das jovens mais bonitas da freguesia, uma tal de Maria Barcelos. Nessa altura remota, os romances eram mais românticos e arriscados. Hoje, o amor é quase um “fait-divers”, ontem era um caso de vida ou de morte. Falou-se. Nos “mentideros” da paróquia e arredores, os amores de Maria e João passavam de boca em boca e ela era uma mulher proscrita da ética social e cristã. Ela era pobre, ele rico. Ele, galã da sociedade, já tivera uma filha mulata no Brasil. De Maria Barcelos teve a primeira menina, Margarida. Pouco tempo depois Maria Barcelos engravidou outra vez. Foi então que João Gonçalves da Costa decidiu regressar ao Brasil, intimando Maria Barcelos a que não o seguisse. Mas o amor de Maria era mais do que muito e, com uma filha nos braços e um filho na barriga – que viria a ter o nome de Júlio – desabalou para o Brasil numa viagem de barco que duraria semanas. Não sei o que se passou no Brasil. O que sei é que, alguns anos depois, Maria Barcelos regressou, já com três filhos: a Margarida, o Júlio e a Maria da Glória.

Nada mais sei dessa mulher aventureira e destemida que, por amor, renunciou a tudo e quase tudo perdeu. O que sei é que dois dos seus filhos, o Júlio e a Maria da Glória, casaram e tiveram também a sua prole. Maria da Glória é mãe de José do Rego Mendes, que casou com uma prima, filha do Júlio, a Serafina. Já casado e com seis filhas e um filho, nos anos vinte do século passado, o Júlio visitou a Califórnia onde, provavelmente em Los Banos, comprou uma camioneta da carreira e trouxe-a para a ilha e foi esse veículo o primeiro a fazer as carreiras diárias entre Angra e a Praia. Ficou conhecido como o Júlio das Camionetas.

Serafina, filha mais velha do Júlio, e José, seu primo e esposo, herdaram parte da Casa do Outeiro e lá passaram os primeiros idílios do seu matrimónio. Mas Serafina adoeceu dos pulmões e José do Rego Mendes, para lhe dar bons ares, construiu, nos anos 40, aquela que viria a ser a primeira casa da Ponta Negra, no Porto Martins. Para lá foram morar com os seus quatro filhos: O José, a Natália, o Aniceto e a Conceição, a mais nova, enfermiça como a mãe, a quem os médicos diagnosticaram que não passaria dos oito anos de vida. Foi no Porto Martins que Serafina morreu, vítima dos seus pulmões. Conceição, a mais nova da casa, não suportou a morte da mãe e chorou lágrimas amargas noite e dia durante muito tempo. Não suportou o segundo casamento do pai. Aos doze anos fugiu e foi parar à Casa do Outeiro onde uma tia, que lá morava, a acolheu. José do Rego, também conhecido por José Libana, vem no seu encalço e perdeu a cabeça, dando, pela única vez na vida, umas palmadas valentes, o que aumentou o desgosto da pequena Conceição, que nunca mais pode voltar para casa. Passou a viver em casa do avô Júlio, que a acabou de criar até aos 22 anos, quando Conceição se casou com o Manuel, em 1965.

Desse casamento nasceram quatro filhos. Não havia semana em que a Conceição, pelo caminho da Fonte do Bastardo abaixo, levando, como um pequeno rebanho, os filhos à sua frente, não fosse visitar a Casa do Outeiro, morada do José, irmão mais velho, também com quatro filhos. Os oito primos davam-se bem e brincavam no sótão, na cozinha, na garagem, no pomar, ou até jogavam o esquisito baseball americano, com aquela luva amacacada e bruta.

Maria da Conceição, filha do José Libana, neta do Júlio das Camionetas, bisneta da romântica Maria Barcelos é minha mãe. Nasceu na majestosa Casa do Outeiro. Os médicos previram a sua morte para perto dos oito anos. Tem quase oitenta. Aos trinta e oito tiraram-lhe metade de um pulmão e ainda não levou a vacina.

Hoje vou comer uma sopa de couves com feijão e vocês nem imaginam o sabor daquela iguaria feita pela Conceição do Manuel Barbeiro. Há de contar-me histórias da saga da Casa do Outeiro, da simpatia das gentes do Porto Martins de antigamente, das lágrimas de quem perde uma mãe ainda criança. E eu hei de reviver as saudades da Casa do Outeiro, onde adivinhávamos os nomes dos aviões americanos que sobrevoavam a Praia, e onde eu brincava com os meus primos Libanas. Vivem todos na Califórnia, perto do lugar onde o nosso bisavô comprou a primeira camioneta que pisou os caminhos de terra desta ilha.

Estava eu na Califórnia, em 1999, quando os meus primos receberam a notícia de que a Casa do Outeiro fora vendida. Choraram como quem chora quase cento e vinte anos de história de uma família à volta de uma casa.

Vejo aquela casa muitas vezes, ao longe, sobranceira sobre a paisagem aos seus pés. Nunca mais lá fui.

*Este artigo foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio
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