Com tantos cartazes, só falta um a dizer: “Morte aos velhos”

Pelo padre José Júlio Rocha

Meu pai morreu a 14 de Dezembro de 2014, aos 74 anos, numa cama do nosso hospital, vítima de uma degenerescência mental e física que, nos últimos treze anos da sua vida, o foi mirrando lentamente, até passar o último ano e meio aprisionado a uma cama articulada, sem nunca perder a consciência, mas sem poder fazer mais nada senão estar para ali a olhar-nos e a morrer.

Foi uma experiência difícil para a família, sobretudo para a mãe, a viver, todas as horas do dia, a falência inexorável das faculdades do marido, a tratá-lo e a cuidar dele para a morte mais que certa. Às vezes pergunto-me sobre o sentido desta vida quando chegamos a uma certa idade, a idade em que se espera a morte, quando tudo o que é bom – a saúde, a beleza, a sanidade mental, a força – se vai transformando apenas na recordação daquilo que fomos. É a maior injustiça que a natureza nos oferece.

Ainda razoavelmente independente, por volta de 2008, meu pai vinha duas vezes por semana a Angra, à fisioterapia que retardava um pouco a degenerescência do seu corpo. Independente como sempre foi, já sem poder conduzir, apanhava a camioneta na Fonte do Bastardo, depois do almoço e, às cinco da tarde, apanhava-a de volta para casa.

Num desses dias, estava eu abancado à minha secretária a trabalhar, quando o telemóvel tocou. Chovia a rodos. Era um amigo meu, que me perguntou: «Teu pai está em Angra?» «Já deve estar a caminho de casa», respondi, «veio hoje à fisioterapia e apanhou a camioneta das cinco». Responde-me, do outro lado, o meu amigo: «Eu acho que vi teu pai, a pé, ali na Grota do Vale, debaixo de chuva». Soaram-me imediatamente os alarmes: desorientou-se e vai a pé para a Fonte do Bastardo.

A primeira coisa que fiz foi ligar para minha mãe, a saber se o pai já estava em casa. Não estava. Numa agonia, peguei no carro e, debaixo de chuva intensa, fui até à Grota do Vale, à sua procura. Nada de Manuel Barbeiro. Dali até à ribeirinha, entrei em todos os estabelecimentos que tivessem a porta aberta, cafés, lojas, bomba de gasolina, etc., sem encontrar rasto de meu pai. Estava quase em pânico e tive receio de ligar para minha mãe, não fosse ela entrar, como eu, em pânico. E se ele caiu naquelas ribanceiras da Grota do Vale? Terá voltado para trás? Dei mais duas voltas, devagar, numa ânsia, até que uma chamada de minha mãe anunciou que ele chegara a casa, todo molhado, porque um senhor lhe tinha dado boleia. O alívio foi indescritível. A partir daí, nunca mais meu pai viajou sozinho. Esse fora o ponto de viragem de uma vida mais ou menos autónoma para uma vida completamente dependente de outros. Não podia ser de outra forma, apesar da teimosia de meu pai em querer sair sozinho, coisa que apoquentava sobremaneira a cansada esposa.

Lembrei-me desta história quando, na semana passada, li, no Jornal de Notícias que, nos últimos quatro anos, só em Portugal, perderam-se mais de 1500 idosos. E, cereja no topo do bolo, desses 1500, cento e dois ainda continuam desaparecidos, alguns, certamente, já mortos.

A minha pergunta tem a solenidade da revolta: algum dos leitores que está lendo este artigo sabia destes factos? Algum de nós sabia, pelas notícias da televisão, dos jornais, ou das mexeriqueiras redes socias, que esquadrinham até os espinhos dos ouriços caixeiros, que há mais de cem idosos que estão perdidos em Portugal, mortos não se sabe onde, recolhidos anónimos em lares, sem se saber rasto deles, só nos últimos quatro anos?

A três de Maio de 2007, Maddie Mccann desapareceu no Algarve e nunca mais foi vista. O caso apaixonou Portugal inteiro e meio mundo. Ainda hoje consegue a proeza de aparecer nas parangonas de jornais e revistas. Todas as vezes que se dá a tragédia do desperecimento de uma criança ou o hediondo crime de um rapto infantil, não se fala de outra coisa. Sim. É justo: se alguém deve ser protegido neste mundo são as crianças. O que me mexe com as tripas é o completo desprezo que a nossa sociedade devota aos velhos, ao ponto de desaparecerem como tordos e ninguém dar por isso, nem se importar.

Já a reles questão, votada em Parlamento, de não criminalizar quem abandona idosos nas urgências dos hospitais, quando abandonar animais é crime, me dá uma dor de cabeça daquelas que tiram o sono. Agora esta do desaparecimento dos velhos é bem mais grave. Não são só os políticos que se estão marimbando para os velhos: somos nós todos.

A nossa era é hipersensível à discriminação. Cada vez menos toleramos a discriminação das mulheres, a discriminação em função do sexo ou do género, da etnia ou da religião. Não haverá também uma intolerável discriminação em função da idade?

O certo é que os acepipes que damos aos velhinhos inúteis, com políticas de saúde, integração, lares, centros de dia ou lugares especiais nos autocarros para idosos, grávidas ou portadores de deficiência, não disfarça uma tortuosa cultura do descarte dos velhos, feios, decrépitos, inúteis e que só gastam dinheiro ao Estado.

Para lá, se lá chegarmos, caminhamos nós todos. E havemos de experimentar a medonha solidão a que os votamos agora.

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