Da “malandrice” dos pobres à dignidade humana

Por Carmo Rodeia

Um terço das pessoas pobres em Portugal tem emprego.

Há quem tenha contrato de trabalho sem termo e esteja efetivo há mais de uma década, com salário certo no fim do mês, sem que isso seja suficiente para evitar uma situação de pobreza.

O Estudo “Pobreza em Portugal – Trajetos e Quotidianos”, feito por onze investigadores e coordenado por Fernando Diogo, da Universidade dos Açores, com o patrocínio da Fundação Francisco Manuel dos Santos, e divulgado esta segunda-feira, diz que “apenas” 13% dos pobres em Portugal não têm emprego — a maioria trabalha e, um em cada três ganha pelo menos o salário mínimo.

Divórcio, desemprego e doença são fatores de pobreza, tal como a velhice. O estudo, aliás, dá pistas  concretas sobre quem são as pessoas em situação de pobreza em Portugal: 32,9% são trabalhadores, 27,5% serão reformados, 26,6% são precários e 13% são desempregados.

A análise do estudo confirmou algo preocupante que é  a natureza estrutural da pobreza,  mantendo-se uma parte expressiva da população nessa situação ao longo de anos e existindo um processo de reprodução intergeracional da pobreza, identificando-se pessoas que cresceram num contexto mais ou menos de privação, condicionando, à partida, as suas oportunidades na vida.

A pobreza aparece como uma quase segunda pele, como um fator hereditário e isso não pode deixar de nos provocar, sobretudo quando andamos a apregoar há décadas a igualdade de oportunidades para todos os cidadãos, que têm os mesmos diretos e deveres diante da lei.

Quando era pequena e apesar de ter nascido numa família relativamente abastada, e com instrução superior, brincava muitas vezes na rua, na liberdade de uma pequena aldeia no concelho de Beja. Sentia que tinha em casa o que a maioria das minhas amigas dessas brincadeiras tão livres, diferentes das do colégio, não tinha e por isso, invariavelmente, carregava a miudagem da rua toda para casa, enchendo-a de bolachas e de outras coisas que eu gostava, e tinha, e sabia que eles não tinham. Mesmo quando a Nana, uma das empregadas que tomava conta de nós, me repreendia e dizia tantas vezes: oh menina, não são companhias para si, não traga essa gente cá para casa…

Lembro-me particularmente de uma família muito numerosa, conhecida pela alcunha da actividade do pai, coveiro no cemitério, que morava duas ruas abaixo da minha. Eram para aí uns 12 filhos; uns tomavam conta dos outros, pois os pais vagueavam entre o trabalho à jorna, muito sazonal e o trabalho para a junta, no cemitério, dinheiro que o álcool levava mais facilmente que a comida. Mas gente séria, como se dizia. Nunca se metiam em confusões. A não ser quando o álcool subia, mas a bebedeira nunca dava para o torto, a não ser lá em casa. Nunca entrei na casa deles, nem sei se era bem uma casa porque o que se contava é que viviam amontoados sem condições de higiene e salubridade, e muitos deles preferiam viver na rua tal era o desconsolo. Lembro-me de passar à porta deles e a criançada estava toda na rua, o que para mim era a garantia de que tinha com quem brincar, no final da tarde, sobretudo no verão.

Fui para Lisboa estudar e nunca mais vi tais pessoas. Hão de ter passado mais de 40 anos até que outro dia, à espera de uma consulta para a minha mãe na unidade de saúde local, olhei para uma senhora, desdentada, toda grisalha, cujo rosto me era familiar. Tinha aspecto de ser uma mulher na casa dos 70. Era uma das filhas dessa família, com quem tantas vezes brinquei. Vive na mesma casa, agora já com algumas melhorias, tem uma rebanhada de filhos, embora menos que irmãos, e embora já trabalhe como empregada doméstica ainda precisa da uma prestação social, para conseguir pagar algumas das contas no fim do mês, e com o apoio da Cáritas, para roupas, sobretudo. O marido trabalha no campo, “mas a vida está difícil com esses estrangeiros que p´raí andam”. Os filhos já não vão à escola porque “não deram muito para os estudos”. Como ela, que ficou com pouco mais do que a quarta classe. Os mais velhos já têm filhos e ela uma mão cheia de netos, que estão sempre lá em casa. “É uma felicidade, Mariazinha. Somos pobres mas não nos falta nada. Vamo-nos remediando. Continuamos honestos”, rematou de sorriso tapado pela máscara , na brevíssima troca de palavras que tivemos depois de uma hora a olhar uma para a outra, sem saber o que dizer nem se teríamos alguma coisa para dizer. Ela estava com duas das netas para serem vacinadas.

Infelizmente, o ciclo de pobreza tende a perpetuar-se de geração em geração, porque a escola continua a não ser valorizada, porque a formação continua a não ser acessível a todos, porque os pobres raramente aparecem nos telejornais e nas notícias. Só quando os números são como os de hoje é que falamos neles. Dos números , nunca dos rostos. Raramente os pobres têm rosto, só quando mostram que são capazes de triunfar atrás de uma bola ou de um modelo é que efetivamente aparecem. Os pobres não dão audiências e as suas histórias magoam e engasgam quem tem tudo. Ou pensa ter.

Na homilia do último Dia Mundial dos pobres, ao comentar a parábola dos talentos (Mt 25, 14-30) o Papa Francisco refletiu sobre o início, o centro e o fim da vida, desafiando os cristãos a serem fieis a Deus, isto é, a servirem os pobres.

A Igreja tem sido uma bóia de salvação na ajuda de emergência. Já o era antes da pandemia, chegando onde os poderes públicos, demasiado burocráticos e longínquos, não chegavam e agora durante a pandemia com as múltiplas ações de combate ao desperdício nas paróquias, que permitiram alimentar muita gente. Mas quem sabe se não estará na hora de estendermos as mãos aos pobres de outra maneira, fazendo-os próximos e encontrando alternativas de vida que preservem a sua dignidade e lhes ensinem o valor da autonomia .

Tinha um amigo jornalista, do Porto, que meio a brincar meio a sério, dizia que não era vergonha nenhuma ser pobre: ter pais pobres e, por isso, nascer pobre. Mas que isso não deveria ser encarado como uma inevitabilidade.

Infelizmente parece que é. Sobretudo, parece que há políticos que continuam a achar que os pobres são todos malandros: que não gostam de trabalhar e não se importam de ser pobres. Entre a resignação e a felicidade vai uma vida de sofrimento, como a da Amélia (nome fictício), filha do coveiro.

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