É para a liberdade que Cristo nos criou

Por Carmo Rodeia

Tinha seis anos quando se deu o 25 de abril. Vivia em Beringel, uma freguesia do concelho de Beja e nesse dia em concreto os meus pais estavam fora do país, num congresso de médicos. A casa da avó a onde ficava nessas viagens dos pais, em Beja, paredes meias com o liceu da cidade, a onde gostava de dar um pulo sempre que me deixavam para estar com os manos mais velhos e os seus amigos- sempre gostei de estar perto de gente mais velha- fizeram com que nesse dia a vida tomasse outro rumo.

Os meus irmãos sempre fizeram parte do movimento associativo, como eu própria havia de fazer mais tarde, como se a militância fosse uma espécie de sangue herdado. Os meus pais nunca tiveram militância partidária mas sempre se falou de política em casa e nunca se pouparam esforços na intervenção cívica. Na Igreja ou fora dela sempre vi nos meus pais exemplos de intervenção social, procurando o bem do outro, fosse oferecendo conforto material fosse oferecendo uma palavra amiga de consolo.

“isso não é comigo”, “não me interessa” ou “cada um faz como quer”, numa espécie de indiferença diante do outro, nunca foram ideias partilhadas em casa, pelo que sempre fui habituada, diria mesmo treinada, para valorar todas as acções pelo bem ou pelo mal. Posso dizer que sou do tempo em que diante da falta de dinheiro as consultas médicas se pagavam com ovos e galinhas, quando os doentes assim podiam; quando nem isso havia, tantas vezes ouvi o meu pai dizer: “deixe lá, paga da próxima vez”. Tal como sempre ouvi os meus pais falarem entre si, e com os amigos, das dificuldades deste e daquele; daquela família que precisava de ajuda para colocar os filhos a estudar ou daquele outro casal que tinha ficado sem trabalho, porque o trabalho no Alentejo, ontem como hoje, era muito sasonal. O fosso entre ricos e pobres era enorme e havia exploração à séria. A miséria de tantos vizinhos era para os meus país um incómodo real, que tentavam combater a todo o custo.

Vem isto a propósito das duas datas que vivemos por estes dias: o 25 de abril, quase a cumprir meio século e o 1º de maio, mais antigo. Datas que devem ser sempre assinaladas porque são datas que nos lembram dois valores essenciais: a liberdade e o direito ao trabalho. E as datas importantes não só efemérides ou trampolim para a luta partidária, elas são importantes para todos porque encerram conceitos, direitos e deveres que não podemos esquecer, como sociedade e como pessoas.

Deus criou-nos para sermos livres, em todas as dimensões e a grande novidade do Cristianismo é justamente a defesa do direito que cada ser tem à sua dignidade e o dever que cada um tem de respeitar e tudo fazer para preservar a dignidade do outro.

Estes são também valores subjacentes ao 25 de abril e ao 1º de maio, porque não há dignidade sem trabalho, sem habitação, sem acesso à educação, sem acesso a cuidados de saúde. E, quando uma pessoa que trabalha de sol a sol não tem o rendimento suficiente para fazer face aos custos da sua vida e da sua família, não tem a sua dignidade respeitada.

Como relatava esta terça-feira o DN, há  uma década que o país não cresce,  em média, mais de 1% ao ano – 0,5% se as contas forem feitas às últimas duas décadas -; 30% da população é pobre; mais de metade dos portugueses que trabalha oito ou mais horas por dia recebe menos de mil euros por mês; a carga fiscal bate recordes consecutivos há três anos e é agora de 36,4% – a taxa real, que inclui prestações sociais, e que é entregue em Bruxelas, está nos 38,2%; e , cereja no topo do bolo, temos um investimento público que tem sido dos mais baixos na zona euro: no ano passado não chegou aos 6 mil milhões. É certo que o salário mínimo subiu em 10 anos 40%, mas quando entre os pobres estão maioritariamente pessoas que trabalham mas cujos rendimentos não chegam para pagar uma vida decente, e em vida decente leia-se alimentação, habitação, saúde e educação, como podemos dizer que honramos abril?

A contestação pode até estar na rua, em níveis que já não se viam há muito tempo, mas se acrescentarmos aos problemas concretos e reais, economia e da sociedade, a apatia cívica sobretudo dos mais novos, a crise de representatividade e  a perda de confiança nas instituições democráticas, veremos que há todo um desafio a vencer, onde abril continua por cumprir.

Olhar para o que correu e ainda está a correr mal obriga-nos a escandalizar com o rumo das coisas e devemos expressá-lo civicamente.

Os sinais dos tempos servem para ler o que ainda não é escrita perfeita. Temos razões para celebrar abril, não por aquilo que já foi conquistado mas sobretudo por aquilo que ainda está por cumprir, que ainda é muito e parece ser cada vez mais.

Talvez precisemos, sobretudo, de reabilitar abril recuperando a dimensão humana do valor da liberdade e da dignidade, empenhando-nos  em tornar concreta a justiça social, em corrigir as drásticas assimetrias que nos desirmanam, quando “com os olhos postos naqueles  que se posicionam entre os primeiros, se esquece daqueles que são os últimos”, que são cada vez mais.

 

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