“Em Eucaristias que assisto em Timor ou em Cuba sinto mais discernimento e coragem do que na Igreja portuguesa”

Tomaz Dentinho é professor Universitário, no departamento de Ciências Agrárias na Universidade dos Açores.

Vive há 30 anos na ilha Terceira. É uma das vozes mais escutadas na análise económica da região. Católico comprometido em diferentes movimentos da igreja aceitou responder às questões do Sítio Igreja Açores, justamente no fim de semana em que se desloca a Ponta Delgada para falar aos Romeiros de São Miguel sobre a Alegria de Ser Cristão.

Na bagagem traz-lhes um desafio quase metafórico: “irem a pé de Lisboa à Europa, por Fátima, Santiago e pelos Caminhos de Santiago em sentido contrário, como se fosse uma cruzada da periferia para a Europa, ensinando-a a rezar e expandindo o que se faz nos Açores à Europa e todo o mundo”. Sobre o atual momento, lembra que já vai na terceira crise que espera que seja “a última a ser agravada pela demagogia política a que nós todos fomos sendo vulneráveis”. Sublinha que “a miséria desresponsabiliza as pessoas de viverem com dignidade e de procurarem melhorar em termos materiais e espirituais” e deixa uma mensagem clara à igreja que tem “que actualizar a Doutrina Social aos desafios da globalização e do século XXI” e ser sobretudo mais ágil na denúncia “de má gestão pública”.

Quanto aos ventos de mudança que sopram na igreja, impulsionados por Francisco –“uma esperança segura”- Tomaz Dentinho fala, ainda, do próximo sínodo e da importância que é os católicos “não criarem um estereótipo de família supostamente cristã excluindo as que provêm de outras culturas e que são também promotoras do amor entre as pessoas, a educação dos filhos e a estruturação da sociedade” .

Sítio Igreja Açores- Tenho três maneiras de começar esta entrevista: pelo Papa, pela nossa igreja diocesana e pela vida que agora vivemos…acho que vou tentar um três em um: como é viver na ilha Terceira, coração da diocese de Angra que pediu aos fieis e aos sacerdotes para fazerem uma espécie de auto reconhecimento, motivada pelo Papa que nos empurra todos os dias para sermos novos evangelizadores e ousados?

Tomaz Dentinho- Tenho apenas uma maneira de responder à frontalidade de um apelo de consciência. Viver na Terceira, como em qualquer outro lado onde criamos raízes, é ser com a circunstância. Tive essa noção quando cheguei aqui há trinta anos. Ou partia em dois anos e a Ilha seria apenas mais uma escala de um percurso de vida, ou a vida estaria intrinsecamente amarrada ao sítio que escolhi. A questão já não era entender um porto de escala nem tão pouco viver num sítio esquecendo outros. A perspectiva passava, numa primeira análise, por pensar que a Ilha, se era o mundo, então teria que incluir, ligar e integrar tudo o que pudesse vir de fora. Se Roma é Roma então integra o mundo! Mas a vivência acabou por ser de confronto, encontro e desencontro num percurso que faz parte de mim, da minha família, dos amigos que fui criando, da Universidade onde trabalho e certamente também da Igreja que me casou e baptizou os filhos, que me integrou com liberdade em irmandades, comissões, romarias, jornais, campanhas pela vida e colégios naturalmente ciente das minhas falhas e limitações; curiosamente foi essa Igreja que me ligou ao mundo, através da amizade, da lusofonia e da ciência, mas com a confiança persentida que o acreditar misteriosamente transmitem.

Sítio Igreja Açores- Hoje, o caminho nem sempre é claro. Há problemas sociais cada vez mais graves: desemprego, famílias desfeitas, jovens sem perspetiva de futuro; idosos abandonados. Até parece que nem estamos no princípio de um novo século que ainda nem atingiu a maioridade. Isso inquieta-o, não termos esta perspetiva de distância a percorrer?

Tomaz Dentinho– A noção que tenho é que o mundo seria melhor se eu fosse mais santo que pecador; se estivesse menos distraído teria percebido

antes e melhor a santidade real e potencial dos sítios e das gentes dos Açores, se estivesse mais atento e menos zangado com as autoridades, talvez houvesse capacidade para abordar com efectividade os problemas de desemprego, de educação e de pobreza. Tinha feito um colégio ao mesmo tempo que o de São Tomás em Lisboa, mal saiu a legislação fantástica dos Açores que admite que o ensino público seja provido por particulares. Tinha começado mais cedo a juntar vontades para fazer uma Universidade de seis mil alunos criando emprego directo e induzido e melhorando o capital humano dos açorianos e a sua capacidade empresarial. Tinha percebido, pela interação infelizmente mais pontual do que contínua com os meus pais, que há que aumentar o espaço de liberdade para que os filhos e os netos acompanhem de perto e em casa o envelhecimento dos pais. Tinha entendido melhor como criar relações de trabalho em que cada um maximiza com responsabilidade o serviço que presta aos outros.

Sítio Igreja Açores- Os cristãos refugiam-se na fé, o que ajuda a viver com o sofrimento…

Tomaz Dentinho- Mas o que aprendi de mais importante é que o juntar de vontades, a melhor percepção e o entendimento acontecem mais com a Graça de Deus e com a Sua presença no nosso coração. Quando isto falha, e falha muitas vezes, não sentimos a alegria da vida, tudo nos atormenta e nem sequer temos capacidade para olhar para o bem feito e para o milagre da vida. Pegando nas suas palavras penso que a Fé dá-nos em primeiro lugar um olhar alegre para a vida mas essa vida integra necessariamente o sofrimento. Mas como o sofrimento mais comum que sentimos não é do corpo mas do espírito é preciso é ter esperança, rezar e estar atento para dar Graças quando esse sofrimento se reduz; porque um sorriso apareceu à nossa frente, porque um esforço maior resultou em alegria, porque os olhos se abriram e vimos melhor.

Sítio Igreja Açores-  Ainda assim, como é que se explica a um pai de família que trabalhou 30 ou 40 anos, que está na casa dos cinquenta e pouco e alguém diz “está desempregado”. Como é que esse homem, ou essa mulher, podem ter fé?

Tomaz Dentinho- Não sei. Todos temos familiares e amigos a quem isso aconteceu nos últimos anos. Uns emigraram para Angola, para o Canadá ou para a casa que ainda tinham longe da cidade. E muitos outros, com um pouco de mais sorte, viram o seu rendimento reduzir-se com revolta e incompreensão; menos fé se assim quisermos dizer. Isso é patente em histórias que conhecemos mais de perto com famílias desagregadas pela emigração, com gerações que não sabem o que é trabalho, e com armadilhas de pobreza envergonhada que emagrece e definha. Mas também sabemos de outras histórias de famílias que se uniram mais para se apoiarem uns aos outros, de amizades que se reforçaram na partilha e de saberes que se ganharam com o sofrimento que a crise trás. Já vou na terceira crise: a de 1975-78, em 1983-1985 e em 2012-2014; pode ser que esta seja a última a ser agravada pela demagogia política a que nós todos fomos sendo vulneráveis.

Sítio Igreja Açores- A Fé é uma bênção, ou tem de ser procurada?

Tomaz Dentinho- Julgo que, como diz Miguel de Unamuno, e sinto de vez em quando, que é preciso querer crer; para criar e alegrar, acrescento agora. Claro que é sempre uma bênção mas basta abrir o coração e essa bênção aparece. E o coração abre-se com a ousadia de gestos de dádiva. Isto é impulso como dizia no anúncio. Impulso para dar uma flor e para dar uma esmola. Impulso para fazer uma festa e impulso para quebrar uma zanga. A oração e a eucaristia ajudam muito; é esse o testemunho que posso dar quando assim consigo fazer; porque, como diz a canção, nos dá a alegria, mesmo que momentânea, das bem-aventuranças: o coração puro, a humildade e a capacidade de amar. E com isso faz crescer a confiança dos que nos são próximos para nos entendermos e perdoarmos quando temos o coração menos puro, quando somos vaidosos e não sabemos amar.

Sítio Igreja Açores- Como é que se explica por exemplo essa alegria do Evangelho a uma família, e a cada um dos seus membros, se tiverem a barriga vazia?

Tomaz Dentinho- Quando temos a barriga muito cheia temos mais dificuldade em estar atentos ao Evangelho e rapidamente nos distraímos do que é importante. Mas tem certamente razão, a miséria desresponsabiliza as pessoas de viverem com dignidade e de procurarem melhorar em termos materiais e espirituais. Percebi um pouco mais sobre a carência num pequeno estudo que fiz sobre a pobreza na Terceira entrevistando e questionando famílias que procuravam apoio na Caritas. Três ideias: primeiro, os pobres estão normalmente associados a famílias pouco funcionais, a actividades de recolecção, a situações de deficiência ou a falta de integração social; segundo, muitos pobres acham que não são culpados pela sua situação e portanto julgam que os outros podem resolver o problema; e, terceiro, os que actuam para resolver problemas de pobreza não têm uma visão consensual sobre a mesma actuando assim de forma inconsistente. Em suma mesmo face à pobreza é possível conhecer e fazer melhor.

Sítio Igreja Açores-  Como é que, por exemplo, a igreja, os cristãos, a sociedade devem lidar, com esta catástrofe mais do que anunciada na ilha Terceira, com a saída dos norte americanos e o que isso representa em termos de impacto financeiro e económico para muitos terceirenses?

Tomaz Dentinho- João Paulo II falou que é preciso discernir. O problema é uma redução de 1000 empregos pagos pelo exterior que têm associados 1500 empregos induzidos e 7500 habitantes que têm que emigrar ou ficar na miséria. Sendo assim a solução passa por possibilitar o estabelecimento de 1000 empregos pagos pelo exterior, o que pode ser feito com a utilização da Base das Lajes para fins civis sem as restrições impostas pelos militares, com a dinamização do Porto da Praia da Vitória com autonomização da gestão e o aproveitamento das rotas Panamax, e com o reforço de outras atividades exportadoras como o leite, a Universidade, a exploração dos recursos marinhos e o turismo. Basta possibilitar a criação de outros 1000 empregos exportadores.

Sítio Igreja Açores- Fez, aliás, uma estimativa da possível emigração resultante desta saída norte americana. Falou entre 5 a 10 mil pessoas que podem sair da ilha. Um quinto da ilha pode sair e nunca mais voltar. Corremos o risco de ser o inicio da desertificação de mais uma ilha?

Tomaz Dentinho- O despovoamento pode acontecer se, conforme se vai ouvindo, admitirmos que os Americanos continuem a restringir a Base das Lajes para fins civis e a prestarem serviços de vigilância que podemos ser nós a prestar se os fins forem civis o que permite a cobrança desse serviço.

Sítio Igreja Açores-  Numa altura destas, qual é o papel que cabe à igreja?

Tomaz Dentinho- A Igreja tem que actualizar a Doutrina Social aos desafios da globalização e do século XXI. Penso nomeadamente que a solução já não está apenas na orientação das políticas dos Estados para regularem a relação entre as empresas e os trabalhadores mas também e fundamentalmente na orientação para a boa gestão do Estado que tem sido o grande responsável da crise actual no Sul da Europa e já foi no mundo soviético, na América Latina e em África. Penso que precisa também saber mais de desenvolvimento e de ter mais coragem na denúncia da má gestão pública. Em Eucaristias que assisto em Timor ou em Cuba sinto mais discernimento e coragem do que na Igreja portuguesa.

Sítio Igreja Açores-  D. António de Sousa Braga pediu ao seu clero que conheça as periferias, materiais e existenciais. Aliás, pediu-lhes uma conversão em chave missionária. É esta a atitude que a igreja deve ter?

Tomaz Dentinho- Em Crime e Castigo de Dostoiévski é o criminoso Raskolnikov que se confessa à pecadora Sónia. É também São Pedro pecador que evangeliza o mundo romano em grande parte criminoso. Ou seja, a santidade da Igreja não se faz apenas pelos sacramentos que nos libertam do pecado mas faz-se no anúncio de Cristo para cristãos e sobretudo para não cristãos. Como se faz isso? Não sei mas gostava de ousar desafiar os romeiros de São Miguel e da Terceira a irem a pé de Lisboa à Europa, por Fátima, Santiago e pelos Caminhos de Santiago em sentido contrário, como se fosse uma cruzada da periferia para a Europa, ensinando-a a rezar e expandindo o que se faz nos Açores à Europa e todo o mundo. Somos pecadores que odeiam o pecado e que, mesmo com essas falhas, ousa anunciar o Evangelho ao mundo; porque vai sabendo e aprendendo que é através do anúncio de Cristo, da oração e do serviço aos outros que podemos ir ultrapassando o nosso pecado.

Sítio Igreja Açores- A igreja teve um papel fundamental no povoamento dos Açores, que continuam a ser a região do país a registar a mais alta percentagem de pessoas que diz ser católica e ter práticas católicas. Como é que se pode preservar e até aumentar a participação e a qualidade destes católicos?

Tomaz Dentinho- Interpreto o Senhor Bispo dizendo que é com a missão e com os sacramentos que se ultrapassa o pecado dos crentes. Fazendo que os turistas visitem uma terra bela e santa. Mobilizando romarias para evangelizar a Europa pelos caminhos de Santiago. Recuperando a União e distribuindo-a como jornal grátis pago pela publicidade em Lisboa, Porto, Ilhas e Funchal. Evangelizando e potenciando as festas do Espirito Santo. Discernindo e aconselhando as formas de reduzir o desemprego, a pobreza, a solidão e o abandono. Mas sobretudo alegrar-se com a maravilha dos sítios e gentes dos Açores; louvar a Deus pelas maravilhas que nos deu.

Sítio Igreja Açores- Cada igreja particular foi chamada a pronunciar-se sobre a família, em dois momentos. O que espera da próxima assembleia sinodal e da exortação do Papa sobre a família?

Tomaz Dentinho- Julgo que a Família tem que ser o sítio seminal da Igreja. É aí que se ama e perdoa com mais naturalidade. É na evolução de cada família que se experimentam os desafios de integração social e desenvolvimento económico. É na dinâmica familiar que se estruturam empresas e comunidades. No entanto é preciso ir mais longe no entendimento da ligação entre os elos de amor: o amor entre pais e filhos, entre marido e mulher e também com as famílias alargadas onde a interligação entre culturas se explicita. Há muitos tipos de família, desde as comunitárias na Finlândia e centro de Itália, às tribais na Alemanha, Escócia e Norte de Espanha e Portugal, passando pelas nucleares mais perto das capitais de impérios em Paris, Londres, Madrid e Lisboa. O importante é não criar um estereótipo de família supostamente cristã excluindo as que provêm de outras culturas e que são também promotoras do amor entre as pessoas, a educação dos filhos e a estruturação da sociedade.

Sítio Igreja Açores-  Que balanço faz destes quase dois anos de pontificado de Francisco?

Tomaz Dentinho- Só tenho pena de não acompanhar o ritmo porque tenho a noção que não só segue e santifica um mundo em constante mudança como vai à frente na liderança dessa mudança. É uma esperança segura.

 

 

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