Em memória das pontes que há para construir

Pelo padre José Júlio Rocha

A um certo tempo, Jesus saiu de Israel e foi às terras de Tiro e Sídon, para os lados do que é hoje o Líbano, terras de outras culturas e de outra fé. Uma mulher cananeia prostra-se aos Seus pés e implora que lhe cure a filha. Jesus não liga. Perante a insistência da mulher, Jesus diz que só veio para as ovelhas perdidas da casa de Israel. A mulher insiste e Jesus provoca-a, dizendo que não é justo tirar o pão dos filhos para dar aos cachorrinhos. E a mulher responde que também os cachorrinhos podem comer das migalhas que caem da mesa dos filhos. É então que Jesus “desiste”, perante a intensidade da mulher: “É grande a tua fé!” E cura a filha daquela mulher de outra religião, de outra etnia, de outra cultura.

Noutro tempo, um centurião romano, em Cafarnaum, suplica a Jesus que cure o seu servo, que sofre horrivelmente. Jesus diz que irá curá-lo e o centurião responde: “Senhor, eu não sou digno de que entres debaixo do meu teto; mas diz uma só palavra e o meu servo será curado.” A resposta de Jesus é emblemática: “Não encontrei ninguém em Israel com tão grande fé!” E cura o servo daquele estrangeiro, invasor, politeísta ou ateu, não se sabe, mas sabe-se que era inimigo de Israel.

Ainda noutro tempo, levantou-se um doutor da Lei e perguntou a Jesus qual era o maior mandamento. Jesus dá-lhe a resposta canónica: amar a Deus e ao próximo. O doutor da Lei pergunta-lhe quem é o próximo e Jesus conta uma das mais conhecidas parábolas da Sua pregação: um homem caiu à beira da estrada de Jericó, assaltado por ladrões. Um sacerdote e um levita, perante o cenário de um homem meio morto, passam ao lado. Mas um samaritano, um inimigo, um herético crente noutros deuses, tem compaixão do desgraçado e ajuda-o com tudo o que pode. Quem é o próximo? O doutor da Lei ficou embasbacado. Jesus estava próximo da heresia e devia ser silenciado.

Estamos perante um Jesus que não olha a paredes nem muralhas, nem a barreiras de etnia, cultura, religião ou seja lá o que for para espalhar a Sua misericórdia. Um Jesus universal, para todos os homens, sem distinção alguma. É este um dos pilares da mensagem de Jesus.

Isto serve de introdução para algumas reflexões sobre a última viagem do Papa Francisco, viagem arriscada e corajosa ao martirizado Iraque, onde se encontrou com a Igreja perseguida e com muçulmanos de boa vontade.

No primeiro dia, o Papa encontrou-se com o primeiro-ministro e com o presidente do País, e com bispos, sacerdotes, religiosos e religiosas, seminaristas e catequistas, na Catedral Sírio-Católica de “Nossa Senhora da Salvação”.

No segundo dia, Francisco viajou até Najaf, para um encontro respeitoso e dialogante com o grão-Aiatola Al-Sistani. Momento profundamente simbólico entre dois homens guardiães da fé, porque nada é possível sem o exemplo de paz que os grandes homens das religiões podem promover. Nesse mesmo dia, parte para a planície de Ur, lugar de reconhecida importância para as três grandes religiões monoteístas, berço de Abraão, venerado por judeus, cristãos e muçulmanos. Voltou a falar da paz.

No dia sete de março, Francisco viajou para Erbil, no Curdistão iraquiano e, mais tarde, para Mossul, onde rezou pelas vítimas da Guerra do Iraque e do terror do autoproclamado Estado Islâmico. Na tarde desse domingo, o Papa celebrou missa num estádio.

Os cristãos, no Iraque de Sadam Hussein, eram cerca de um milhão e meio. Depois da guerra e, sobretudo, do terror do Daesh, ficaram reduzidos a 300 mil. Foi esta Igreja mártir e perseguida que Francisco foi encontrar e consolar, com o simbolismo da sua presença. Mas também foi construir pontes com o Islão, consciente de que, se não houver diálogo e paz entre as religiões, tudo o resto fica ferido de morte.

Muita gente não apreciou esta viagem. Presumo que muitos muçulmanos radicais, que querem a pureza da fé islâmica intocável e não suja pela presença dos infiéis cristãos. Mas também choveram algumas críticas de dentro da própria Igreja (alguma novidade?), por parte de quem tem a cabeça tão formatada que tudo o que o Papa Francisco faça é sempre duvidoso. Afirmou-se que o Papa não foi corajoso mas inconsciente, que está a fazer coisas contra a doutrina católica, que está a um passo da heresia. Esta ala da Igreja corresponde, no Islão, mais ou menos aos radicais, os puros, que rezam impecavelmente a Alá, com uma metralhadora a tiracolo para eliminar infiéis.

Sou do tempo em que grandes líderes mundiais eram verdadeiramente líderes que pretendiam conduzir o mundo para um lugar chamado paz, que se encontravam e promoviam aquilo que, no mundo de hoje, é cada vez mais uma utopia ou uma fraqueza: o diálogo. Hoje não. O mundo não tem líderes capazes e entrámos numa era de concorrências e tensões, de tribalismos nacionalistas e de promoção do ódio ao diferente.

Neste mundo pré-apocalíptico, uma figura é sinal de contradição, contracorrente, um único peregrino da paz entre os grandes do mundo.

É o Papa Francisco, cansado mas feliz, depois de mais uma viagem que põe o mundo embasbacado, tal como o doutor da Lei ao ouvir a incómoda parábola do Bom Samaritano.

*Este artigo foi publicado na edição desta sexta-feira no jornal Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio

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