Em que crê quem não crê?

Pelo padre José Júlio Rocha

O capítulo 32 do livro do Êxodo, o segundo da Bíblia, começa assim: “Vendo que Moisés demorava a descer do monte…”

Moisés tinha subido ao Horeb, no Sinai, à procura de Deus, de quem receberia as Tábuas da Lei. Durante quarenta dias Moisés permaneceu no monte e, na Bíblia, o número quarenta significa, entre outras coisas, uma geração inteira, um círculo fechado de tempo, uma espécie de infinidade.

Por isso, perante o silêncio de Moisés e do próprio Deus, o povo de Israel cansou-se da espera e da ausência, e decidiu criar um deus mais próximo, visível, imaginável e presente, que pudesse adorar como aquele que verdadeiramente o libertou da escravidão do Egipto. Foi então que construiu o Bezerro de Ouro.

Esta é uma parábola, uma alegoria da história da humanidade, desde os seus primórdios até, e, se calhar, principalmente, aos dias de hoje. O monoteísmo das religiões abraâmicas adora um Deus todo-poderoso e eterno, inimaginável, isto é, não possível de se fazer representar por imagens. Deus não é constatável visivelmente, não se dá a conhecer pelos sentidos humanos que percebem o mundo, habita para além das fronteiras do espaço e do tempo. A história da relação da humanidade com o único Deus é repleta de aventuras e contratempos, sempre numa corda bamba entre a certeza da fé e a dúvida do silêncio. Não se pode provar cientificamente a existência de Deus, não se pode provar a Sua não existência.

Uma das mais significativas metáforas desta relação conturbada está na Capela Sistina, no Vaticano. No centro do teto da capela, Miguel Ângelo pintou a Criação do Homem. Aí podemos ver Deus, que, de um lado, estica o dedo, e o homem, também com o dedo meio esticado, do lado oposto. Entre o dedo de Deus e o dedo do homem há um espaço vazio de alguns centímetros. Esse espaço exíguo era, para o próprio Miguel Ângelo, o centro da pintura, o centro da Capela Sistina, o centro de toda a história da humanidade: por mais próximos que estejam, os dedos de Deus e do homem nunca se tocam. Aqueles dois ou três centímetros de vazio abarcam o infinito, desde o espaço sideral à distância infinita entre a condição humana e a divina. É o grande silêncio de Deus.

A história das grandes religiões é feita de todas as tentativas de conquistar esses dois ou três centímetros de infinito. Quando fracassa, o homem procura um deus que toque no seu dedo, ou melhor, que seja um prolongamento do seu dedo. Algo de palpável, sensitivo, visível e ruidoso, que sacie a ânsia de infinito que habita o coração de cada homem. É essa, um pouco, a história religiosa dos tempos modernos. Por um lado, proliferam religiões de características “new age”, sentimentalistas e milagreiras, fechadas sobre si mesmas, onde a dimensão emotiva e espetacular desafoga as frustrações e as ânsias dos seus seguidores. Não esqueço que, aqui há uns anos, passei por uma cidade dos arredores de Lisboa, em tempos bastião da esquerda revolucionária. Em quinhentos metros quadrados encontrei quatro templos de quatro dessas religiões, todas elas prometendo a eterna felicidade aqui na terra. Isso diz muito sobre a demanda de plenitude do homem dos nossos dias, mesmo pelos caminhos mais esquisitos.

Por outro lado, a busca do divino, hoje, centra-se na negação ou na desistência de Deus. O ateísmo militante, que se tornou um facto social no século XIX, tem duas vias: a via científica, cujo inspirador é Charles Darwin, baseia-se no facto de que, à medida que a ciência e o conhecimento avançam, cada vez precisamos menos de Deus para explicar o mundo. A via ética, inspirada em Nietzsche, afirma que, para o homem ser plenamente homem, Deus tem que morrer. Onde está Deus perante o mal e o sofrimento humano?

Não é difícil perceber que, morto Deus, outros deuses têm que habitar o coração humano, já que é impossível ao homem deparar-se com o insuportável vazio. A ideia de Schopenhauer, de que não passamos de uma cintila de luz com um infinito de escuridão atrás de nós e um infinito de escuridão à nossa frente, é de um pessimismo insuportável. O homem é um ser essencialmente religioso e, se tirarmos Deus, algum deus o habitará.

Entre muitos, conheci um amigo que contestava veementemente Deus. Era, como costumamos dizer, um “falso ateu”: dizia que não acreditava em Deus mas não parava de falar dele. O seu pai tinha sido anticlerical. Para o seu filho, na casa dos 30 anos, Deus já não representava nada. Esta é a história dos nossos dias. Já não predomina o anticlericalismo daqueles para quem os padres eram parasitas e a Igreja uma estrutura que desvirtuava a própria mensagem de Jesus. Também já não predomina o antiteísmo do homem e revolta, em luta com Deus. Assistimos à era da indiferença, do agnosticismo prático, para o qual tanto faz que Deus exista ou não exista que isso não muda uma vírgula à existência. O homem do Ocidente rico e opulento deixou de olhar para o Céu.

Em que crê quem não crê?

 

*Este artigo foi publicado na edição desta sexta-feira do jornal Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio

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