“Estamos todos na mesma tempestade mas não estamos todos no mesmo barco” disse esta manhã o reitor do Santuário do Senhor Santo Cristo dos Milagres

Em domingo de Santo Cristo dos Milagres, sem festa no `Campo do Senhor´, milhares de açorianos seguiram a Eucaristia a partir do Convento da Esperança, transmitida pela RTP 1, RTP Açores e RTP Internacional

Pela primeira vez em 320 anos a imagem do Senhor Santo Cristo dos Milagres, a mais venerada pelo povo açoriano, não sairá esta tarde em procissão pelas principais ruas de Ponta Delgada, devido ao cancelamento das festas em virtude da pandemia provocada pela Covid-19.

Na homilia da missa do Senhor Santo Cristo, celebrada na sua Igreja, sem a presença de fieis, e transmitida pelos órgãos de comunicação social e digital, o reitor do Santuário destacou a “profunda tristeza” que lhe vai no coração por não ser possível fazer a festa, mas sublinhou “uma tristeza ainda mais acentuada” quando vigoram leis “injustas e contrárias” aquilo que “deveria ser a responsabilidade coletiva”.

“Estamos tristes porque não há festa, não há foguetes, não há musica e, sobretudo não há encontro: com os que nos são queridos e com o senhor Santo Cristo”, afirmou. Mas, “ a tristeza que todos sentimos foi ontem ainda acentuada. Ficámos todos mais tristes” afirmou o cónego Adriano Borges numa alusão à sentença proferida ontem pelo Tribunal da Comarca dos Açores dando razão ao Habeas Corpus concedido a um cidadão residente que se encontrava confinado num hotel de Ponta Delgada a cumprir uma quarentena obrigatória, decretada pelo Governo Regional na sequência das medidas de prevenção da Covid-19, e que foi considerada ilegal.

O que se passou ontem , disse , fê-lo lembrar o que sucedeu há mais de dois mil anos, na véspera de Jesus ter sido crucificado e morto. Antes do processo, as primeiras palavras foram proferidas por Caifás (Judeu, sumo sacerdote), quando afirmou: é preferível um só homem morrer pelo povo do que o povo morrer por causa de um só homem.

“Infelizmente, talvez, um povo inteiro pode sofrer por causa de um só homem. As palavras de Caifás podem continuar a ressoar no nosso mundo, na nossa vida e ter consequências bastantes sérias” prosseguiu.

“ Quando o legalismo está acima da vida e da saúde  é imperativo que algo se faça porque não podemos de maneira nenhuma lavar as nossas mãos. Não podemos ser como Pilatos ao apresentar o Ecce Homo, lavando as mãos e dizer: `não encontro neste homem culpa alguma`. Se calhar existem culpas. Claro que existirão culpas e não podemos fechar os olhos nem calar-nos”, disse ainda.

“Estamos na semana da vida, que este ano assenta na defesa da fragilidade que humaniza o ser humano e a fragilidade, hoje, parece que nos desumaniza. Mas essa fragilidade fica ainda mais acentuada quando as leis forem injustas e sobretudo quando as leis forem contrárias aquilo que deveria ser a responsabilidade coletiva” acrescentou ainda ressalvando que estas “sim, são razões para uma grande tristeza”.

Retomando a ideia deixada pelo Papa Francisco na Benção Urbi et Orbi do passado diz 27 de março, na Praça de São Pedro, o reitor do Santuário do Senhor Santo Cristo frisou que, “infelizmente não estamos todos no mesmo barco”. Apesar da “saudade que nos une”, como na Viola de Dois Corações (instrumento característico da musica popular açoriana), “a tempestade é a mesma mas não estamos todos no mesmo barco” assinalou o sacerdote.

“Alguns têm que puxar um barco a remos; outros estão à espera que apareça uma bonança que os leve a bom porto porque só têm uma vela; outros, talvez, terão barcos mais potentes, pensando eles chegarem sozinhos a bom porto, mas a tempestade é a mesma, o  mar é o mesmo e a ansiedade é a mesma… Por isso não sairemos incólumes de tudo isto porque tudo isto nos tocará”, concluiu.

Durante a homilia, e visivelmente emocionado, o sacerdote que ficará na história como o primeiro reitor do Santuário a ter de decidir o cancelamento das festas religiosas mais importantes dos Açores, organizadas pela Igreja, quis, no entanto, deixar uma palavra de esperança para todos os devotos do Senhor Santo Cristo, elogiando o comportamento dos fiéis que respeitaram as decisões da reitoria do Santuário. O sacerdote lembrou as inúmeras pessoas que ao longo destes dias têm marcado presença no Campo de São Francisco e destacou a “serenidade e tranquilidade com que o fizeram”.

“O  silêncio que se tem vivido aqui foi bonito ; a forma ordeira e serena com que tudo tem acontecido tornou este silêncio  num silêncio cheio de sentido. Por isso, não é de todo descabido que todos nós açorianos e devotos continuemos a  pedir que este seja o Campo do Senhor: um campo sagrado, de silêncio e de oração”.

“Este milagre do respeito, do distanciamento social, de todos sabermos comportar-nos neste tempo é uma oportunidade que deve dar grande alegria à nossa cidade e a todos os açorianos”.

“Não pode haver sinos, foguetes ou manifestações publicas, mas podemos venerar Cristo em nossos corações” exortou deixando uma palavra de esperança.

“São muitas as cordas que nos amarram e nos tornam impotentes, muitas são as responsabilidades; são inúmeros os mantos que pesam sobre nós e se tornam pesados demais ;  muitos são os espinhos que atravessam o nosso pensamento, o nosso coração e a nossa vida, mas são esses espinhos, esse manto e essas cordas que Jesus Cristo assumiu para si para que nós fossemos livres, para que nós fossemos felizes”, disse.

“A imagem hoje não sai à rua nem os devotos podem vir ao seu Santuário, mas o Senhor Santo Cristo não está fechado: Ele quer estar fechado e enclausurado no nosso coração; temos de ser capazes de lhe abrir a nossa vida e o nosso coração”, afirmou.

“Não estamos abandonados por Jesus: até podemos sentir uma certa orfandade mas Jesus não nos deixará de auxiliar, nunca”, reiterou destacando um dos aspectos que mais se salienta nesta imagem do Ecce Homo e que é o seu olhar.

“Uma das coisas que mais nos impressiona é a forma como ela nos olha,  independentemente do ângulo ou do lugar onde nos encontramos” afirmou.

“Diante desta imagem extraordinária, percebemos como os olhos de Jesus estão sempre postos em nós. É um olhar que nos toca e nos vê tal como somos”. E terminou: “ Ele é mais íntimo de nós do que  nós somos de nós mesmos e o seu olhar diz-nos apenas: amo-te, amo-te, amo-te, sem nos julgar”.

No final da celebração foi lida uma mensagem do Bispo de Angra que exorta à esperança e à serenidade.

O reitor do santuário deixou ainda a confirmação avançada já pelo Igreja Açores na passada sexta feira de que o cardeal português D. José Tolentino Mendonça será o presidente da Festa no próximo ano, ele que também já “se assumiu como um devoto do Senhor Santo Cristo” disse o Cónego Adriano Borges, que lembrou o bispo emérito de Angra que hoje celebra 50 anos de sacerdócio. D. António de Sousa Braga foi ordenado a 17 de maio de 1970, em Roma, pelo Papa Paulo VI.

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