Este Natal não é para velhos

Pelo Padre José Júlio Rocha

Por uma vez na vida vesti-me de Pai-Natal. Já lá vão una anitos, eram os meus sobrinhos ainda crianças. Vestido a rigor e com umas barbas desmesuradamente farfalhudas, não fiz grande furor, uma vez que, ao primeiro “ho-ho”, a malta pequena descobriu logo que era o tio padre. Não foi grande trauma, uma vez que, na minha família, desde cedo deixam de acreditar no Pai-Natal da Lapónia. Este é um dos nossos mitos urbanos: quando é a idade certa para dizer a uma criança que, afinal, o Pai-Natal não existe? Os adultos têm o trauma de não traumatizar as crianças perante a terrífica descoberta de que, afinal, o Pai-Natal não o é. Ainda há adultos que acreditam no Pai-Natal, imaginem só as crianças, quando descobrem que aquele velhinho simpático não passa de uma figura para entreter a miudagem.

O que nos resta do Natal? A sala está pronta. Há uma árvore branca, imponente e estilizada, com as luzes, também brancas, embutidas na árvore. Já não há bolas de vidro: são em acrílico, com desenhos brilhantes e laçarotes em cima. Debaixo da árvore, meia dúzia de caixotes prateados, cruzados com fitas amarelas e vermelhas, dão ao cenário um aspeto ultramoderno, estilo americano. Tudo é luz, tudo brilha, tudo aquece. Ao fundo da sala, uma mesa farta é presidida por dois perus rechonchudos e preparados para uma refeição – a consoada – que se quer o momento supremo da família. Vão-se amontoando, debaixo da árvore, carradas de presentes, forrados em belos invólucros, à espera de serem rasgados, com “oooohs” de surpresa ou desilusão. Não me escapa da memória aquela criança que recebeu 36 ofertas e amuou, não gostou de nenhuma, atirou duas ou três contra a parede, porque o presente que ela queria não veio, nem das mãos do Pai-Natal. Um só dia de Natal por ano pode dar cabo de todos os esforços de educação de uma criança. O presépio, estilizado e comercial como a árvore, os presentes, as comidas, as luzes e as ofertas, jazia meio esquecido, já sem leivas nem pastores de barro. O presépio tornou-se num simples adereço de Natal, sem as luzes da ribalta dos pais-natais ou dos presentes.

Olho para os meus irmãos, presentes na festa de família, e recordo os natais da nossa infância, de há quarenta e tantos anos a esta parte. Tudo começava a princípios de dezembro quando, do mato, chegava a criptoméria bem feita, em cone, quase a tocar o teto do quarto de jantar que, a partir daí, ficava quase sempre fechado, não fosse o gato aventurar-se no tal alpinismo que atrai todos os gatos a todas as árvores de Natal. Do sótão desciam as luzes, as fitas, as bolas, quase todas de vidro, vindas da base ou nos sacos americanos que os nossos emigrantes mandavam. Num desses sacos veio o primeiro Pai-Natal que vi na minha vida. Era um boneco insuflável, feio e de olhar esgazeado, a quem nós chamávamos São Nicolau (Sanicolau) e ficou para lá, no quarto, a esvaziar, cabeça a dobrar para o lado, como um elefante em loja de porcelanas. As figuras do presépio desciam também do sótão, solenes, todas de barro, algumas esgadanhadas e com mazelas. Era a felicidade. Logo pela manhã fria, saíamos para os matos e as clareiras, à procura de leivas, pedras e húmus para o mais belo presépio das nossas vidas. À noite entrávamos no sacrário que era o quarto de jantar e, de joelhos, rezávamos o terço ao Menino Jesus, a segurar o gato que se sentia intimamente atraído pelas bolas e fitas da árvore. O cheiro intenso da criptoméria e da sua resina é das coisas que ainda me transportam ao Natal da infância. O olfato é o sentido da memória por excelência. À consoada comia-se bacalhau ou galinha. Simples. Complicada era a noite, quando íamos pôr o sapatinho debaixo da chaminé, na amassaria. Por ali devia passar o Menino Jesus, que o Pai Natal estava mais preocupado com os americanos do que connosco. Dormir? Cá nada! Era a noite sacrificial dos meus pais, à espera que adormecêssemos para que o Menino Jesus viesse. E as prendas lá chegavam, simples, singelas, uns martelinhos de plástico, uns carrinhos de praça, umas roupas, qualquer coisa que fosse diferente dos outros dias era uma festa. O que me resta desse Natal?

Olho a minha doce e distraída mãe, tentando imaginar o seu Natal de há setenta anos atrás. E recordo a casa dos meus avós. No meio-da-casa, uma pequena árvore que não consigo agora adivinhar. Não tem luzes, bolas, fitas. Tem laranjas, tangerinas e postais da América, mandados pelos parentes emigrados, a exibir igrejinhas cobertas de neve ou grutas de Belém sob o céu estralado, estampas dos anos cinquenta ou sessenta, que nos eram belas. O cheiro a citrinos enche a sala e, sobre a cómoda, sobre as suas gavetas, sobre um naperon bem desenhado, um menino Jesus de pé, vestidinho branco, dentro da sua redoma centenária, abençoa o lar. José e Maria, desmesuradamente mais pequenos que o Menino, velam por ele. Pratos de trigo espigado, já crescido, alegram a cómoda e a mesa. Nos tempos da infância do meu pai jantava-se uma canjinha de galinha bem aquecida, um dia diferente, e ia-se à missa do galo depois do terço. O Pai Natal ainda só andava na América e na Lapónia; o Menino Jesus ainda não dava presentes. O Natal era bem pobre, mas cheio do Menino Jesus.

O que nos resta do Natal? O que há de comum nestas três gerações de Natal? Do primeiro Natal da História, o Evangelho segundo São Lucas reza assim: “Maria teve o seu filho primogénito, que envolveu em panos e recostou numa manjedoura, por não haver lugar para eles na hospedaria.” Nesse Natal não houve lugar para Jesus. É a maior semelhança com o Natal de hoje.

 

Este texto foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio.

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