O `cinéquio´ matou a estrela do crítico

Pelo Pe. Teodoro Medeiros

Que filmes valeram a pena em 2016? De todos os prazeres recomendados para a Quaresma, talvez o de fazer uma lista de filmes seja o mais necessário. Sem remar contra as marés, sem seguir quem gosta de ser seguido. E privilégio ao importante: argumento, atores, o que se vê, como se vê. Ordem aleatória.

Moonlight. O filme do ano, garantem. O miúdo com infância difícil, em três capítulos, até ser adulto. História inovativa e humana, atores competentes, busca de contenção narrativa (americano a querer ser art movie). Mas torna-se previsível e estático. Três estrelas em cinco.

Indivisíveis. O filme do ano, mas pouco distribuído. Drama sólido, inesperado, sobre um Rabo de Peixe italiano. Retrato íntimo-social de tirar o fôlego (novo neo-realismo?). Jovem realizador surpreende, Edoardo de Angelis. Atrizes muito jovens dão murro na proverbial mesa, as gémeas Fontana, napolitanas. Cinco estrelas.

Um cidadão Ilustre. Um prémio Nobel da literatura enreda-se no seu passado; volta a Salas, a sua aldeia natal. Humor fora dos limites. Ritmo lento mas cheio de surpresas. Dramático e muito bem conseguido. Gastón Duprat e Mariano Cohn, dois realizadores a seguir. Quatro estrelas.

Pelo meu filho. Mãe aproxima-se de quem atropelou o filho e fugiu (ele morreu). Suspense ao nível de Hitchcock. Um rosto que é o livro onde estão escritos os nomes dos que se condenam e dos que se salvam. Uma pequena (será?) produção francesa. Cinco estrelas.

A Alegria Louca (La Pazza Gioia). Duas mulheres fogem do manicómio. Prodígio do “toda a gente é pessoa” ou “cada um tem a sua história”. Muito comovente, pela exposição, mais uma, do amor de uma mãe, esta com problemas psíquicos. Cinco estrelas.

Hacksaw Ridge. Mel Gibson volta ao sangue. Desta vez a causa é nobre; o (super) herói que salvou dezenas de soldados numa só batalha. O ponto de vista alternativo torna-o ideal para adolescentes e não só. Apesar do festival de clichés, quatro estrelas.

Fragmentado. O filme de terror sobre um homem com 23 personalidades diferentes. Eficaz quanto baste, no conjunto. Agrada aos fãs do género mas sobretudo aos de Shyamalan. Três estrelas.

Ela. Tema cruel sobre pessoas cruéis. Na linha de Haneke, desvela o sadismo das pessoas comuns. Verhoeven em forma, sim, mas ainda mais Isabel Huppert. Três estrelas.

O número. Um sobrevivente do Holocausto em busca de vingança. Atom Egoyan dá-nos um final mais à Shyamalan que o próprio. Tocando os limites do inverosímil psicanalítico e ainda um olhar sobre a velhice. Quatro estrelas.

O Primeiro Encontro. Naves extraterrestres povoam (novamente) os céus. As qualidades técnicas não salvam um filme com poucas ideias próprias. Quando surpreende, quase no fim, já o leite está derramado. Três estrelas.

Aquarius. Sónia Braga é uma mulher que resiste ao sistema. Aguenta por todo o filme a sua fúria… mas termina com um “bofetão” (muito digno) aos capitalistas de serviço. Que mais se pode pedir? Quatro estrelas.

Julieta. Quando Almodôvar faz filmes tristes… mas não está ao nível de ”Fala com Ela” (e quantos estarão?). Mas convence no seu enredo em espiral do sofrer (e é bastante triste, sim, mas pleno). Quatro estrelas.

Silêncio. Baseado no livro magnífico de Shusaku Endo. Parte da História da cristianização do Japão. Portugal é directamente citado (o nosso passado é muito bom). Apesar de algumas concessões, a obra merece ser revista e discutida teologicamente. Cinco estrelas.

Eu, Daniel Blake. Novo indivíduo contra o sistema. Raiz socialista mas transcende a sua matriz: aborda-se a fome encoberta e o analfabetismo tecnológico (até porque basta ter 40 anos para se ser já um “cota”!). Diz que Portugal gostou muito. Bom gosto. Cinco estrelas.

***

São quase dois opostos, cinéfilo e cinéquio; se aquele é “amigo” do cinema, este último usa-o para passar tempo. Como os filósofos, os cinéfilos vivem e perseguem cada nova ideia e cada novo filme (ou velhos!). Por seu lado, o cinéquio (da raiz grega oikos, casa) prefere seguir as modas sem renegar o lar.

Mas a etimologia não adivinha o que vem a seguir, a inversão dos papéis. Como o filósofo, considerado um ativista do inútil, o especialista de arte também é descartado. Às vezes a culpa poderia ser assumida: já todos lemos críticas que são monumentos de divagação e palavreado (a tendência mais recente tenta dar remédio: curto e “straight to the point”).

E só lhes fica bem; até porque vivemos o tempo em que qualquer pessoa é crítico para o seu e-público (perdão mas a auto-ironia é inevitável). Ah, e há mais a lamentar: a tendência cinéquica é encorajada por Hollywood, os votantes dos Óscares recebem os filmes em cópias DVD.

As mesmas acabarão por ser ostensivamente pirateadas: será isso assim tão mau? Os filmes serão vistos, e isso é que interessa. O caricato é que o método seja o do visionamento doméstico: onde está a cultura do cinema como comunhão com os outros? E assim se faz história: num sofá aborrecido, entre um tweet e um snapchat.

A ironia maior? Quando uma noite de Óscares grita ao universo: -“Ajudem-nos! Nós não sabemos qual é o melhor filme de 2016.” Diz que quem trocou o envelope estava a tweetar uma fotografia da Emma Stone. Cite-se “O Tubarão” do Spielberg, quando dizia que era preciso uma camioneta maior.

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